Na semana passada falei aqui de experiências de poesia executadas por computadores, e hoje vou continuar nessa linha para apresentar textos que, não tendo sido realizados por computadores, acusam, no entanto e deliberadamente, a influência dessas experiências, quer pela maneira como foram escritos quer por incluírem computadores ou robots como personagens. Refiro-me a uma determinada poesia portuguesa dos anos 60 e não à literatura de ficção científica, que frequentemente utiliza robots como personagens, mas geralmente sem aquela especificidade de pesquisa da linguagem que se pode encontrar nas obras de alguns poetas portugueses dos anos 60, o que, neste contexto, os torna mais singularmente significativos.
O aspecto combinatório de um poema é uma realidade que todos os poetas conhecem e, por isso, é natural que tenham sido os poetas a interessar-se e a serem visados em primeiro lugar pelas experiências a nível da linguagem feitas com cérebros electrónicos, pois que, se para os investigadores os processos de manipulação utilizados pela poesia eram particularmente notáveis, para os poetas, as experiências científicas foram um estímulo e um veículo de renovação.
Ciência e arte nunca estiveram desligadas, sabemo-lo bem, mas, na era actual, em que à ciência se acrescenta a omnipresença da tecnologia, os artistas assemelham-se cada vez mais aos investigadores. A criação artística, como descoberta, passa a ser um trabalho experimental, em que o acaso e o programado se equilibram ou degladiam, sendo a experiência, em si, em alguns casos, admissível como suficiente acto criador, independentemente dos resultados, uma proposta de criação em que o processo, o caminho percorrido, ou seja, o programa - como para a máquina - é que é o determinante e, finalmente, mais válido ou instrutivo.
Esta linha de pensamento artístico, entre nós, deu origem à publicação de dois números de uma revista de vanguarda intitulada Poesia Experimental que surgiu em Lisboa nos anos 60 - no 1 cm 1964, e no 2 em 1966 - de onde saiu um grupo de poetas que vieram trazer para a nossa literatura uma contribuição tão renovadora como não se via desde o aparecimento do grupo do Orpheu, no princípio deste século.
Os poetas mais significativos que participaram nesse grupo estavam a par das teorias científicas mais actuais - Cibernética, Teoria da Informação, Linguística Moderna, etc. - e realizaram as suas obras como experiências científicas (ou o mais cientificamente possível), e em alguns casos talvez pudessem alinhar sem receio ao lado das experiências dos cientistas e dos técnicos, fazendo o que a máquina fez e indo mais além do que a máquina, ao exercer sobre os seus próprios actos e textos produzidos uma avaliação crítica.
Herberto Helder, António Aragão, Melo e Castro, Salette Tavares e eu própria, todos somos exemplo dessa tendência e dessa pesquisa, e nas nossas obras podem-se encontrar elementos para uma análise comparativa da influência recíproca das pesquisas científicas e das pesquisas artísticas e sua interligação.
Para concluir esta crónica, vou ler um texto intitulado «A Descolocação no Espaço ou no Tempo», em que o tema do acaso é não só central, mas ainda tratado como se tivesse sido produzido por um computador que, a partir dos elementos dados, tivesse uma série de variações. Este texto faz parte do volume intitulado Estruturas Poéticas - Operação 2, que eu escrevi e publiquei em 1967, há precisamente 10 anos.
[leitura de «A Descolocação no Espaço ou no Tempo»]
"Estruturas Poéticas" de Ana Hatherly