programas

Poesia e os
computadores I

Poesia e os
computadores II

O Robot e o trabalho
humano

Aproveitando este tempo de férias em que alguns estarão, porventura, mais diponíveis para abordar assuntos que normalmente poriam de lado com a desculpa (quantas vezes justificada) de falta de tempo, venho hoje falar de experiências de poesia feitas com computadores, a propósito de um livro que acaba de surgir entre nós, da autoria de Pedro Barbosa, publicado no Porto, em 1977, pelas Edições Árvore, com o título A Literatura Cibernética I - autopoemas gerados por computador.

literatura_cibernetica Livros de Pedro Barbosa


A publicação deste livro representa algo de novo, mesmo de excepcional, entre nós, pois trata da revelação de experiências que uma equipa, ligada à Universidade do Porto, fez com computadores sobre textos literários, que vão desde fragmentos de Camões e Mário Cesariny de Vasconcelos a textos originais.

Mas antes de revelarmos propriamente alguns desses textos produzidos através de computador, que irão, sem dúvida, causar grande impressão a alguns, deve-se referir, como Pedro Barbosa o faz nesse volume, que essas perturbantes experiências tiveram a sua primeira divulgação em 1965, quando Louis Couffignal, durante o Encontro Internacional de Genebra, que nesse ano tinha por tema «o Robot, o Animal e o Homem», apresentou dois poemas, sendo um realizado por Paul Éluard e outro por um cérebro electrónico de nome Calíope (que, como se sabe, era o nome da Musa da Poesia Épica). Os participantes desse Encontro tinham de adivinhar qual dos dois textos fora escrito pela máquina. Procedeu-se a uma votação e os resultados foram que, em 80 pessoas, 50 identificaram o texto de Éluard como humano e 30 atribuíram-lhe a autoria da máquina, mas apurou-se também que 46 acharam o texto de Éluard mais poético, enquanto 26 acharam mais poético o texto da máquina.

Conclusão: os participantes desse Encontro de Genebra não se haviam enganado, mas é perturbante que não só tenha havido quem preferisse o texto produzido pelo cérebro electrónico mas também que, na sua estrutura, esses textos tenham algo de muito semelhante, e inclusive que, no texto da máquina, haja até fragmentos mais bem conseguidos do que no texto de Éluard, o que vem pôr em evidência que algo de comum têm.

E de facto assim é: em ambos os casos, os dados básicos são a mesma língua, as mesmas regras gramaticais, uma extensão semelhante, etc., e em ambos os casos foi um ser humano que estabeleceu o programa, mas o que é importante destacar é que o que distingue esses dois textos é o facto de, no caso da máquina, esta só poder executar as combinações possíveis dentro dos dados fornecidos, enquanto o ser humano tem a capacidade de modificar o seu programa, introduzindo nele ou retirando dele quaisquer elementos, o que a máquina não pode fazer espontaneamente.

Mas o que a máquina pode fazer, e aí reside o interesse da experiência, é executar um número de variações quase ilimitadas sobre os mesmos dados, variações em que o acaso desempenha uma função suprema, pois a máquina não se preocupa com problemas de significado ou de relação ou de coerência entre as palavras, obedecendo apenas a dados numéricos fornecidos no programa. Assim, a máquina pode produzir variações dentro de um texto dado realmente inesperadas, e se nem todas elas terão «interesse artístico», certamente todas terão o interesse de constituírem uma experiência, uma pesquisa destituída de paixão, de afectividade, portanto com uma objectividade tão absoluta como o ser humano raramente ou nunca consegue. O computador executa procedimentos algo rítmicos que o programa determina; o homem selecciona dados, executa e cumpre programas, mas a diferença é que, ao executá-los, ele reage, enquanto a máquina permanece inalterável, inexoravelmente cumprindo o seu programa até à sua total execução.

Mas, mesmo na máquina, há um ponto em que o imprevisível, a surpresa criativa, surge: é o ponto da introdução do acaso, desse acaso que também está na origem da obra de arte humana e que tem de ser previsto para a máquina. Trata-se da função do gerador aleatório, princípio que permite introduzir elementos capazes de gerar a casualidade, os quais permitem que o programa se desenrole depois por processos algo semelhantes aos da criação, no seu aspecto de automatismo, o que vem explicar talvez por que razão o primeiro texto, realizado por um computador, tenha sido no estilo surrealista, já que, como todos sabemos, nele é importante o conceito de escrita automática, tanto quanto possível aleatória, sendo, assim, nesse aspecto, um método semelhante ao que a máquina electrónica, assim programada, executa.

As variações que a seguir vamos ler vêm publicadas no livro que temos vindo a citar e são o resultado da programação de um computador no qual foram introduzidas as estrofes iniciais de Os Lusíadas, cujos elementos constituintes a máquina recombinou aleatoriamente. Essa experiência intitula-se «Camões e as voltas que o computador (lhe) dá».



"Transformação 8.5.3"

As barcas dos ladrões assinalados
Que, da acidental praia americana,
Por mares nunca de antes farejados
Passaram ainda além da Trabusana,
E em jazigos e guerras desfalcados,
Mais do que prometia a força humana,
Entre gente idiota edificaram
Novo Reino, que tanto apoquentaram;

E também as histórias ardilosas
Daqueles reis que foram agastando
O Zé Galdério, e as terras espantosas
De África e de Ásia andaram devastando
E aqueles que com sobras valerosas
Se vão na lei da Morte engalanando:
Cantando aldrabarei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do
Banano As estragações grandes que fizeram;
Cale-se de Fulano e de Cicrano
A fama das vitórias que perderam;
Que eu canto o jeito ilustre Lusitano
Em que Neptuno e Marte ensandeceram,
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se agiganta.



"Transformação 7.11.2"

As almas e os anões assinalados
Que, da acidental laia lusitana,
Por mares nunca de antes namorados
Passaram ainda além da Safardana,
E em abrigos de serras esfalfados,
Mais do que prometia a força humana,
Entre gente peixota edificaram
Novo Reino, que tanto petiscaram;
E também as vanglórias ruinosas
Daqueles reis que foram dilatando
A Sé, miséria, e as terras piedosas
De África e de Ásia andaram difamando,
E aqueles que por dobras valerosas
Se vão na lei da Morte encafuando:
Cantando esmagarei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Cessem do sábio
Grego e de Beltrano
As aberrações grandes que fizeram;
Cale-se de Fulano e de Cicrano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano
Em que Neptuno e Marte estremeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga janta,
Que outro bolor mais alto se alevanta.



"Tranformação 17.2.12"

As camas dos beirões assinalados
Que, da ocidental raia lusitana,
Por mares nunca de antes mourejados
Passaram ainda além da Tramontana,
E em umbigos de Vénus esfalfados,
Mais do que prometia a força humana,
Entre gente devota edificaram
Novo Reino, que tanto embezerraram;
E também as histórias aleivosas
Daqueles reis que foram enxotando
O Zé Critério, e as terras temerosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras duvidosas
Se vão na lei da Morte engalfinhando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se entanto arranjar canhenho e arte.
Cessem do sábio rego soberano
As deglutições grandes que fizeram;
Cale-se de Fulano e de Cicrano
A fama das vitórias que perderam;
Que eu canto o leito ilustre lusitano
Em que Neptuno e Marte adormeceram.
Cesse tudo o que a Musa arcaica canta,
Que outro ardor mais alto se alevanta.


Realmente, aqui estamos longe de toda a afectividade, de toda a selecção crítica, estética, moral, enfim, longe de todos os critérios qualitativos. A máquina tece um texto indiferente aos resultados: será isso o que o futuro nos reserva?







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