programas

Arqueologia do
tempo presente II

Arqueologia do
tempo presente I

Com Haroldo de
Campos

De certa maneira pode dizer-se que a realidade mental, geral, do actual habitante da cidade é qualquer coisa como um percurso gradual da paráfrase à parafrásia.

A série de constantes chamadas ao passado que é o mecanismo da experiência através da memória faz com que o nosso presente seja, por um lado, uma constante pesquisa arqueológica, por outro, uma constante estratificação, uma cristalização do instante. Se a paráfrase for o nosso modelo instantâneo de análise, o nosso instrumento, verificaremos que não somos mais do que uma constante tradução, interpretação, alusão ao que foi, do que foi, que tudo tende por fim para uma parafrásia, uma perturbação da palavra, não já no sentido patológico do termo mas no sentido alegórico que ele sofre por paráfrase.

O que se quer aqui referir, evidentemente, é o desvio, o desvio que sofre a norma pela interpretação, o próprio desvio que a norma é, em virtude das interpretações que suscita e acaba por sofrer.

Por exemplo, esta crónica que se está aqui a escrever, a ler e sobretudo a publicar, no processo do seu desenvolvimento conduz-nos agora para uma citação do sociólogo Raymond Williams quando ele, a propósito do fenómeno da escrita para a imprensa, diz que «a leitura dessa espécie de droga fácil é a condição permanente da maior parte da escrita efémera».

Ele escreveu isso analisando o fenómeno da evolução da imprensa na sociedade, inclusive como um fenómeno da evolução do gosto, e a certa altura citava a célebre asserção de Coleridge, segundo a qual «as duas tendências da natureza humana são a indulgência preguiçosa e o horror do vazio».

Estas duas citações, que no texto consultado (The Long Revolution) se seguiam, encadeadas aqui também, sugerem as perguntas que a seguir serão feitas e que dizem respeito tanto aos produtores como aos consumidores de escrita. Por exemplo: se eu disser que escrevo isto porque preciso, o leitor poderá dizer que lê isto porque precisa?
a coragem - é um filme incompreensível - é um filme que retrata a decadência de uma sociedade - é um filme reaccionário - é um filme altamente válido como alerta - é um filme que nos atinge profundamente - é um filme para um actor - é um filme muito impressionante - é o melhor filme dos últimos tempos - o filme vale pelo actor principal - é um híbrido de Bufíuel e mais quinhentos grandes realizadores - é um híbrido de Harold Pinter e dos filmes ingleses com muita relva e cheiro a chic - é um filme que fala de um escritor através das suas personagens - é uma caricatura do Pai-Todo-Poderoso - é uma crítica à família - é o descrédito do casamento - é um filme sádico - é um filme sobre os recalcamentos nas relações humanas - é um filme sobre a repressão - é um filme que questiona a autoridade - é um filme sobre a prepotência das estruturas da sociedade - é um filme indecente - é um filme catártico.

O que é o quotidiano da maior parte das pessoas senão uma estratificação instantânea do real em parcelas mínimas? No fim forma-se um conglomerado baço, quebradiço, inútil.

É por isso que para a maior parte das pessoas o passado é um peso e por isso a maior parte de nós situa no futuro as suas melhores realizações sob forma de esperança.

E para terminar, como começamos, com Blanchot, eis que ele diz: «Sade compreendeu perfeitamente que o estado soberano do homem energético, tal como ele o conquista identificando-se com o espírito da negação, é um estado paradoxal.»

Expresso,1978







ligações

Ana Hatherly

The Long Revolution