Artigo Científico
“Da
Ciência à Técnica... à extinção?”
por
Departamento de Engenharia Informática
Universidade de Coimbra
3030 Coimbra, Portugal
rleitao@student.dei.uc.pt
Resumo
- Proposta de uma visão crítica
do ponto de vista científico para preservar a ciência da morte. Análise
sustentada no depoimento de alguns cientistas e na observação – leia-se
constatação – do dia-a-dia. O aparecimento e evolução das novas
tecnologias leva, dia após dia, ao esquecimento da verdadeira essência da
Natureza humana: o conhecimento. Cada vez se vive mais a técnica e menos o
intelectual, e, tal como os seres humanos, a própria “ciência, por incrível
que pareça, é mortal”. Apela-se, finalmente, a uma crítica construtiva, com
sustento científico, “semeando a ciência” no solo da cultura.
Palavras chave – Ciência, Cultura, Evolução Social, Técnica.
A importância da crítica científica
O lado obscuro da Ciência... e talvez não!
Replantar a Ciência na Cultura
Na sociedade actual, cada vez as pessoas se desligam mais da ciência, enquanto produção de conhecimento, enquanto procuram uma aliança com o prazer fácil e imediato que a técnica oferece. Estamos, então, perante um cenário em que é indispensável reeducar os nossos jovens. “Estes encontram-se em sub-construção da própria identidade dentro de uma sociedade em sob-contrução tecnológica”, revela Jacques Lévine [1]. Por outro lado, “Saberemos nós inventar, a tempo, novas vozes para um controlo colectivo do nosso futuro permitindo, deste modo, à consciência cidadã de não se deixar ultrapassar pela competência técnica?, pergunta Jean-Marc Lévy-Leblond [2]. Pretende-se, portanto, com este artigo, mostrar uma perspectiva da evolução da sociedade, talvez oculta em geral, que poderá acarretar consigo, talvez com algum exagero, graves riscos para sobrevivência da humanidade. Após uma breve introdução histórica, onde será focado o sentido de evolução científico e tecnológico, passando por breves exemplos práticos, a solução para o problema poderá ter que passar pelo regresso da ciência a um carácter filosófico e ético abraçando a cultura.
O homem descobriu o fogo e o tecido e protegeu-se do
frio, descobriu a roda e construiu o carro, encontrou areia e construiu casas,
castelos, arranha-céus, vilas e cidades. Se olharmos atentamente às mais
variadas ciências, podemos concluir que o Homem evoluiu de mãos dadas com a Ciência,
com a arte do conhecimento. O Homem construiu o carro mas não se ficou por aqui
e construiu um novo carro mas mais veloz. O Homem olhou para o Céu e afinal
também queria voar. E assim construiu avionetas, aviões, aviões ainda mais
velozes. Mas, já no Céu, o Homem voltou a olhar para cima e construiu os
foguetões e outras naves espaciais. O Homem chegou à lua! E, para seu prazer,
lá deixou a sua marca.
“Mas, tal e qual os terráqueos, a própria
ciência, por incrível que pareça, também ela é mortal” [2].
Perante uma Ciência cada vez mais técnica e menos
intelectual, verifica-se o aparecimento de uma nova prática com o intuito de
preservar a Ciência da morte, a chamada “crítica científica”.
Impulsionada pelo físico Francês Jean-Marc Lévy-Leblond [2],
e tal como já acontece noutras áreas tal como na Literatura, esta prática
defende que neste ambiente de sobrevivência do conhecimento, é uma arma que irá
preservar a ciência tornando-a menos técnica, por um lado, e devolvendo-lhe
uma vertente filosófica e até ética.
Através de um olhar mais atento, constatamos que o
Homem chegou a uma estagnação científica preocupando-se, quase por completo,
com o melhoramento das suas próprias descobertas, pois estas oferecem o prazer
imediato, à margem de uma actividade cognitiva que trará novas descobertas e
novos prazeres. Observamos, portanto, o avanço da técnica, por um lado, e o
recuo da ciência, por outro, que se traduz na necessidade de enaltecer as
descobertas científicas. Para ganhar este ar de “triunfo”, as pesquisas
científicas são divulgadas de modo a privilegiar os termos com impacto
publicitário.
Concretizando esta ideia, basta pegarmos no caso mediático da ovelha Dolly que, segundo alguns cientistas, é usado um método que “funciona mal” e que nem os próprios cientistas que o praticam “compreendem porque resulta” numa pequena margem das inúmeras tentativas. Torna-se evidente a necessidade de mudar o rumo da ciência para caminhos menos pretensiosos, evitando que esta se torne vítima dos seus próprios sucessos. Caso contrário poderá morrer, tornar-se em cinzas semelhantes às que foram reduzidos os conhecimentos da ciência grega, armazenados em Alexandria. E, finalmente, transformar-se em pó, assim como o Homem que a criou ao longo de quatro séculos.
Mas afinal o que se deve entender por crítica científica? Ora, um determinado valor de uma sociedade, tal como esta prática humana, apenas é tido como prática cultural se dois pontos coexistirem. Se por um lado é essencial a existência do trabalho de criação, por outro lado, no seio dessas manifestações culturais, é fundamental o trabalho de crítica. Esta permitirá explicar, comentar e compreender a razão daquela criação. E, à medida que as obras modernas aparecem, cada vez é mais importante um elo de ligação que permita alcançar os seus significados. Deparámo-nos, então, com o paradoxo da ciência. Existe a criação, a pesquisa científica, as ideias, os novos conhecimentos, mas não existe o trabalho que envolve a elucidação do sentido, que permite que esse criação seja comentada e compreendida por todos. Em jeito de comparação, poderemos invocar o serviço que Charles Baudelaire [3] fez no século XIX na área das artes plásticas.
A Europa foi inventada pela cultura e inventou a ciência. Terá chegado o tempo que ele se confronte com ambas as facetas da sua identidade. Acima dos ideais com que a Europa se debate na problemática na unificação económica e política, esta confrontação dará resposta a uma exigência ofuscante. “Como faremos face ao grande desafio da era moderna: aquele que se debate com a democracia, descendente desta cultura, a tecnocracia, por sua vez, descendente desta ciência? Saberemos nós inventar, a tempo, novas vozes para um controlo colectivo do nosso futuro permitindo, deste modo, à consciência cidadã de não se deixar ultrapassar pela competência técnica? [2].
Estamos, ainda, na presença de uma cultura em fase de projecto, mas,
espera-se, tornando-se eficaz, que a crítica científica possa vir a
transformar a ciência de modo a permitir-lhe fugir da sua extinção. Uma vez
que a ciência apresenta-se, dia após dia, cada vez mais triunfal, será um
pouco bizarro falar-se da problemática que a envolve ao ponto de extinguir-se.
Mas, o que é certo, é que esta aparência, ou ilusão, advêm daquilo a que as
pessoas chamam de “tecnociência”, conceito que acentua mais o lado
instrumental, operacional e técnico da ciência em detrimento das suas
capacidades intelectuais e cognitivas. A ciência vai desaparecendo em proveito
de pura manipulação do planeta, uma técnica que julgamos capaz de transformar
o mundo, mas não necessariamente de o compreender. Mais uma vez, estamos
perante uma ciência que para sobreviver terá de adoptar uma cultura que a
torne menos técnica, devolvendo-lhe uma vertente filosófica e até ética. A
“crítica científica” virá não para limitá-la ou reduzi-la, mas para
preservá-la.
Seria, deveras, impossível comportar uma ciência em evolução sem a técnica
como adjunta. Se por uma lado é difícil falar de ciência sem técnica, já o
caso muda de figura quando nos referimos à técnica sem a abordagem da ciência.
A razão para tal acontecer prende-se com o facto de que os avanços
apresentados como científicos são, na realidade, da carácter técnico. Mais
uma vez, um bom exemplo é a clonagem. Os pesquisadores que criaram a ovelha
Dolly, ou mais recentemente a clonagem de um porco, por exemplo, não
compreendem muito bem por que a técnica funciona. Até porque a técnica
funciona mal, pois apenas 2% das fertilizações têm sucesso. São necessárias
várias tentativas para que o método resulte. O facto de se utilizar a técnica
da insistência quando não compreendemos algo, mas que resulta de vez em
quando, revela um abandono dos domínios da ciência e da biologia para o domínio
exclusivamente da técnica.
Recuando até ao início do século passado, observamos que das grandes
ideias científicas do século XX, todas as pesquisas brilhantes pertencem à
primeira metade do século, incluindo aí a descoberta da dupla hélice do código
genético, em 1954. Depois, as questões são as mesmas, não houve evolução.
Não nos apercebemos de que somos mais complicados do que o que pensávamos.
Passados cinquenta anos, não se realizou nenhum avanço gigantesco ou radical.
Apesar do discurso triunfalista dos pesquisadores de hoje em dia, a ciência tem
ganho eficácia no plano da técnica, mas o mesmo não se pode inferir no plano
intelectual.
Se por um lado impera o triunfalismo invocado pelos pesquisadores e
outros interessados, nem só de graças vive a ciência. A problemática que
envolve a replicação ou alteração genética, caso Dolly e alimentos transgénicos,
provoca uma reacção de medo na sociedade. Mas, o que é facto, é que tais
“produtos” não são resultados da ciência, mas consequência do que ele
permite fazer. Estas novas obras não são mais que a produção resultante de
uma associação entre a ciência, a técnica, a economia e a política de uma
determinada sociedade. Daí resultam graves consequências para a cultura científica.
Após uma nova descoberta, os pesquisadores, plenos de orgulho e satisfação,
apresentam o seu trabalho, mas, quando as consequências se tornam ameaçadoras
a população não treme quando aponta a culpa para a ciência. Mais uma vez, a
ciência deverá mostrar-se mais modesta e menos pretensiosa. “Quanto mais
triunfal for a ciência, mais ameaçadora ela se tornará!”[2]. A partir
deste momento, as consequências negativas das coisas culminarão num impacto
negativo da ciência.
Deste modo, a ciência poder-se-á tornar-se vítima dela própria.
O grande problema está em reencontrar o elo de ligação entre a ciência
e a cultura. Quando a ciência moderna surgiu, no século XVII, ela estava
inserida na cultura. Grandes figuras dessa época tal como Galileu, Descartes ou
Pascal faziam de tudo dentro do mesmo movimento, não havia separação. A ciência
era parte integrante na cultura. Ao longo dos tempos, verificou-se uma evolução
no sentido de uma autonomização da ciência, que acabou por separá-la da
cultura.
Hoje em dia, fala-se em “cultura científica”. Mas, se por um lado,
adivinha-se uma cultura voltada para a ciência, por outro lado, encontramos uma
cultura enquanto arte e por consequente indivisível. Seguindo este raciocínio,
seria necessário semear a ciência num ambiente de cultura, possibilitando
resgatar o elo perdido que a ciência tinha com a prática literária e as
demais áreas da arte.
O século passado, desde o seu início, veio lembrar-nos que as culturas
são mortais, e, seguindo os passos do anterior, este novo século que se
iniciou poderá muito bem vir a mostrar-nos que as ciências, também elas, não
são imortais. As tensões políticas e as forças económicas, tal como, num
passado próximo, trabalharam no sentido de levar à Europa o renascer da sua
cultura, assim como ao nascimento da ciência, também ela, num futuro próximo,
conduzir, conjuntamente, à decadência.
"Restar-nos-á
obter, das relações complexas entre ciência e cultura, uma visão
clara à escala do continental. Esta aproximação, não passando de um sonho ou
desejo de alguns cientistas e cidadãos, não será de espantar que daqui a 20,
30 ou 50 anos, a ciência, como a conhecemos nos últimos quatro séculos, tenha
desaparecido e venha dar origem a uma espécie de tecnicismo.
A ciência é, por incrível que pareça,
mortal!" (Rui Leitão - Adaptado)
Analisado o caminho da ciência até ao mundo do século XXI, chegamos rapidamente à conclusão que estamos perante uma ciência estagnada e adormecida. Impulsionada pelos próprios cientistas, surge uma nova prática, a crítica científica, que tornando a ciência menos técnica, por um lado, e devolvendo-lhe a vertente filosófica e até ética, por outro, tem como intuito preservar a ciência da sua extinção. Assim como ela nasceu à cerca de quatro séculos, pretende-se, com esta crítica científica, reencontrar o elo de ligação entre a ciência e a cultura.
Sim, porque "A
ciência é, por incrível que pareça, mortal..."
1.
Jacques Lévine, Doutorado em Psicologia, Psicanalista.
2.
Jean-Marc Lévy-Leblond, Professor de Física na Universidade de
Nice,Director da revista Alliage. Um dos Impulsionadores da chamada “Critique
de science”.
3.
Charles Baudelaire, Poeta
e crítico francês (1821-1867). Autor de Les Fleurs du Mal, influenciou a estética
poética das gerações posteriores. Baudelaire torna-se conhecido como
crítico de artes plásticas em revistas onde formula a sua concepção daquilo
que deve ser a arte moderna.
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Data da última actualização: 17/05/2001