[ Cartas aos meus Amigos ]

[ Qualquer sugestão é bem vinda ]

  Conferência de apresentação do livro "Cartas aos meus amigos"

Agradeço às instituições organizadoras deste Primeiro Encontro da Cultura Humanista o convite que oportunamente me enviaram para apresentar o livro, de edição chilena, "Cartas aos Meus Amigos". Agradeço as palavras pronunciadas por Luis Felipe García em representação de Virtual Ediciones.

Agradeço a intervenção de Volodia Teitelboim, a quem gostaria de responder futuramente e comentar, com o detalhe que merecem, muitos dos brilhantes conceitos que expressou nesta ocasião.

Agradeço a presença de destacadas personalidades da cultura, dos meios de comunicação social e, evidentemente, dos numerosos amigos que hoje nos acompanham.

Nesta breve exposição, gostaria de ambientar o livro que hoje se lança publicamente, destacando que não se trata de uma obra sistemática, mas sim de uma série de comentários apresentados no conhecido, e tantas vezes utilizado, estilo epistolar. Desde as "epístolas morais" de Séneca, chegou até hoje uma farragem de exposições que se disseminaram pelo mundo e que tiveram, com certeza, uma influência e interesse díspares. Hoje, são já muito conhecidas as "cartas abertas" que, ainda que pareçam dirigidas a uma pessoa, uma instituição ou um governo, estão escritas com a intenção de chegar mais além do destinatário explícito, quer dizer, com a intenção de chegar aos grandes públicos. Foi neste último sentido que se pensou o nosso presente trabalho. O título completo do volume é "Cartas aos meus amigos sobre a crise social e pessoal no momento actual". Quem são estes "amigos" a quem se dirigem as missivas? São, sem dúvida, aquelas pessoas que coincidem ou diferem da nossa postura ideológica, mas que, em todos os casos, o fazem com a genuína intenção de lograr uma maior compreensão e uma melhor adequação da acção para superar a crise que estamos a viver. Isso quanto ao destinatário. Quanto à temática, não se deixou de destacar o campo de crise no qual se inscrevem tanto as sociedades como os indivíduos. Consideramos o conceito de crise no seu sentido mais habitual de final de um acontecer que se resolve numa ou noutra direcção. A "crise" faz sair de uma situação e entrar noutra nova que levanta os seus próprios problemas. Entende-se popularmente a "crise" como uma fase perigosa de que pode resultar algo benéfico ou pernicioso para as entidades que a experimentam e estas entidades são, neste caso, a sociedade e os indivíduos. Para alguns, é redundante considerar os indivíduos uma vez que estes já são implicados ao falar-se de sociedade, mas do nosso ponto de vista isto não é correcto e a pretensão de fazer desaparecer um dos termos apoia-se numa análise que não partilhamos. Com isto, dou por concluído o comentário sobre o título do livro.

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Ora bem, a ordem razoável do discurso indica que se deveria entrar no tema com o estudo dos conteúdos da obra. No entanto, preferiríamos não seguir essa sequência escolar, mas antes adentrar-nos nas intenções que determinaram toda esta produção. Estas intenções consistem em recolher o pensamento do Novo Humanismo e verter o seu ditame sobre a situação que nos cabe viver. O Novo Humanismo está a advertir para a crise geral da civilização e está a propôr umas medidas mínimas a tomar para superar esta crise. O Novo Humanismo está consciente do apocalipsismo de final de século e de final de milénio de acordo com o que ensina a História. Bem sabemos que nestas conjunturas epocais se levantam as vozes de quem proclama o fim do mundo e que, traduzidas a diverso folclore, assinalam o fim do ecossistema, ou o fim da História, ou o fim das ideologias, ou o fim do ser humano apanhado pela máquina, etc. Nada disto sustenta o Novo Humanismo, que diz simplesmente: "Hei, amigos, há que mudar o rumo!" Ninguém quer ouvir-nos? Estamos equivocados? Tanto melhor; se estamos equivocados é porque as coisas avançam por um caminho justo e vamos percorrendo a via para o Paraíso na Terra. Alguns estruturalistas dir-nos-ão que a crise actual é uma simples reacomodação do sistema, um reordenamento necessário de factores num sistema que continua a realimentar o progresso; alguns pós-modernistas afirmarão que simplesmente se desajustou o relato do século XIX e que os "decisores" sociais estão a oferecer um incremento de poder e de pacificação graças à transparência tecnológica e comunicacional. Ah, bem, amigos!, podemos descansar confiando em que a Nova Ordem se encarregará de pacificar o mundo. Não mais Jugoslávias, Médio Oriente, Burundi ou Sri Lanka. Não mais fomes, não mais 80% da população mundial no limiar e abaixo do limiar de subsistência. Não mais recessão, não mais despedimentos, não mais destruição das fontes de trabalho. Agora sim, administrações cada vez mais limpas, taxas de escolaridade e de educação crescentes, diminuição da delinquência e da insegurança dos cidadãos, diminuição do alcoolismo e da toxicodependência... em suma, conformidade e felicidade crescentes para todos. Isso está bem, amigos. Sejamos pacientes, o Paraíso está próximo!... Mas se isto não fosse assim, se a situação actual continuasse a deteriorar-se ou se se perdesse o controlo, quais seriam as alternativas a seguir?

É esse o discurso das "Cartas aos meus amigos". E não cremos que seja ofensivo considerar, a modo de tímida opinião, a possibilidade de que aconteça um penoso desenlace. Ninguém se ofende por os edifícios contarem com as suas escadas de emergência, por os cinemas e os lugares de reunião pública estarem apetrechados com extintores, com saídas de emergência; ninguém protesta por os estádios desportivos se verem obrigados a habilitar portões de saída suplementares. E, evidentemente, quando se vai ao cinema ou se entra num edifício, não se está a pensar em incêndios ou catástrofes, porque tudo se entende no contexto da prudência. Se não se incendeia o edifício, nem o cinema, nem se produz a desordem no estádio, tanto melhor!

Na sexta Carta abriga-se o Documento dos Humanistas, no qual estes expõem as suas ideias mais gerais, a sua alternativa à crise. Não é um Documento desmancha-prazeres, não é um ideário pessimista, é uma exposição sobre a crise e uma apresentação de alternativas. Ao lê-lo, mesmo aqueles que não estivessem de acordo deveriam dizer: "Bem, é uma alternativa. Devemos cuidar destes rapazes, as sociedades necessitam de escadas de emergência. Não são nossos inimigos, são a voz da sobrevivência".

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O Documento dos Humanistas, que a sexta Carta recolhe, diz-nos: "Os humanistas põem à frente a questão do trabalho face ao grande capital; a questão da democracia real face à democracia formal; a questão da descentralização face à centralização; a questão da antidiscriminação face à discriminação; a questão da liberdade face à opressão; a questão do sentido da vida face à resignação, à cumplicidade e ao absurdo... Os humanistas são internacionalistas, aspiram a uma nação humana universal. Compreendem globalmente o mundo em que vivem e actuam no seu meio imediato. Não desejam um mundo uniforme, mas sim múltiplo: múltiplo nas etnias, línguas e costumes; múltiplo nas localidades, nas regiões e nas autonomias; múltiplo nas ideias e nas aspirações; múltiplo nas crenças, no ateísmo e na religiosidade; múltiplo no trabalho; múltiplo na criatividade. Os humanistas não querem amos; não querem dirigentes nem chefes, nem se sentem representantes nem chefes de ninguém..." E, no final do Documento, conclui-se: "Os humanistas não são ingénuos nem se engulosinam com declarações de épocas românticas. Nesse sentido, não consideram as suas propostas como a expressão mais avançada da consciência social, nem pensam a sua organização em termos indiscutíveis. Os humanistas não fingem ser representantes das maiorias. Em todo o caso, actuam de acordo com o seu parecer mais justo apontando às transformações que crêem mais adequadas e possíveis neste momento que lhes cabe viver".

Não está plasmado neste Documento um forte sentimento de liberdade, de pluralismo, de auto-limitação? A isso bem se pode chamar proposta alternativa e de nenhuma maneira proposta avassaladora, uniformizadora e absoluta.

E como é este processo de crise? Para onde aponta? Nas diversas cartas exemplifica-se sobre um mesmo modelo. O modelo de sistema fechado. Este começou no surgimento do Capitalismo. A Revolução Industrial foi-o potenciando. Os Estados nacionais, nas mãos de uma burguesia cada vez mais poderosa, começaram a disputar entre si o mundo. As antigas colónias passaram das cabeças coroadas para as mãos das companhias privadas. E a Banca começou a sua tarefa de intermediação, de endividamento de terceiros e de apoderamento das fontes de produção. Foi já a Banca que financiou as campanhas militares das burguesias ambiciosas, emprestou e endividou as partes em conflito e quase sempre saíu a ganhar de todo o conflito. Quando as burguesias nacionais ainda concebiam o crescimento em termos de exploração inclemente da classe trabalhadora, em termos de crescimento industrial, em termos de comércio, referenciando sempre como centro de gravidade o próprio país que manejavam, já a Banca tinha saltado por cima das limitações administrativas do Estado nacional. Chegaram as revoluções socialistas, o crack da Bolsa e as reacomodações dos centros financeiros, mas estes continuaram em crescimento e concentração. Depois do último estertor nacionalista das burguesias industriais, depois do último conflito mundial, ficou claro que o mundo era um só, que as regiões, os países e os continentes ficavam ligados e que a indústria necessitava do capital financeiro internacional para sobreviver. O Estado nacional começou já a ser um estorvo para a circulação de capitais, bens, serviços, pessoas e produtos mundializados. Começou a regionalização. E com isso a antiga ordem começou a desestruturar-se. O velho proletariado, que a seu tempo era a base da pirâmide social enraizada nas indústrias extractivas primárias e que passou pouco a pouco a fazer parte dos regimentos de trabalhadores industriais, começou a perder uniformidade. As indústrias secundárias e terciárias, os serviços cada vez mais sofisticados foram absorvendo mão-de-obra numa reconversão contínua dos factores de produção. Os antigos grémios e sindicatos perderam poder de classe, direccionando-se para reivindicações imediatas de tipo salarial e ocupacional. A revolução tecnológica provocou novas acelerações num mundo díspar, no qual vastas regiões postergadas se afastavam cada vez mais dos centros de decisão. Essas regiões colonizadas, espoliadas e destinadas a ocupar sectores de abastecimento bruto na divisão internacional do trabalho, cada vez vendiam mais barata a sua produção e cada vez compravam mais cara a tecnologia necessária ao seu desenvolvimento. Entretanto, as dívidas contraídas para seguir o modelo de desenvolvimento imposto continuavam a crescer. Chegou o momento em que as empresas necessitaram de se flexibilizar, de se descentralizar, de se agilizar e competir. Tanto no mundo capitalista como no socialista, as estruturas rígidas começaram a rachar ao mesmo tempo que se impunham despesas cada vez mais sufocantes para manter em crescimento os complexos militar-industriais. Sobrevém, então, um dos momentos mais críticos da História humana. E é ali, do campo socialista, a partir de onde começa o desarmamento unilateral. Só a História futura poderá determinar se aquilo foi um erro ou foi, precisamente, o que salvou o nosso mundo do holocausto nuclear. Toda esta sequência é fácil de reconhecer. E assim chegamos a um mundo em que a concentração do poder financeiro mantém prostrada toda a indústria, todo o comércio, toda a política, todo o país, todo o indivíduo. Começa a etapa do sistema fechado e num sistema fechado não resta outra alternativa que a sua desestruturação. Nesta perspectiva, a desestruturação do campo socialista aparece como o prelúdio da desestruturação mundial que se acelera vertiginosamente.

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Este é o momento de crise em que estamos situados. Mas a crise tende a resolver-se em diversas variantes. Por simples economia de hipóteses e, além disso para exemplificar a traços largos, nas Cartas esboçam-se duas possibilidades. Por um lado, a variante da entropia dos sistemas fechados e, por outro lado, a variante da abertura de um sistema fechado mercê da acção não natural mas sim intencional do ser humano. Vejamos a primeira matizada com uma descrição algo pitoresca.

É altamente provável a consolidação de um império mundial que tenderá a homogeneizar a economia, o Direito, as comunicações, os valores, a língua, os usos e costumes. Um império mundial instrumentalizado pelo capital financeiro internacional que não haverá de reparar sequer nas próprias populações dos centros de decisão. E nessa saturação, o tecido social continuará o seu processo de descomposição. As organizações políticas e sociais, a administração do Estado, serão ocupadas pelos tecnocratas ao serviço de um monstruoso Paraestado que tenderá a disciplinar as populações com medidas cada vez mais restritivas à medida que a descomposição se acentue. O pensamento terá perdido a sua capacidade abstractiva substituído por uma forma de funcionamento analítico e passo a passo segundo o modelo computacional. Ter-se-á perdido a noção de processo e estrutura resultando disso simples estudos de linguística e análise formal. A moda, a linguagem e os estilos sociais, a música, a arquitectura, as artes plásticas e a literatura acabarão desestruturadas e, em todo o caso, ver-se-á como um grande avanço a mistura de estilos em todos os campos, tal como ocorreu noutras ocasiões da História com os ecletismos da decadência imperial. Então, a antiga esperança de uniformizar tudo nas mãos de um mesmo poder desvanecer-se-á para sempre. Neste obscurecimento da razão, nesta fadiga dos povos ficará o campo livre para os fanatismos de todo o signo, para a negação da vida, o culto do suicídio, o fundamentalismo descarnado. Já não haverá ciência nem grandes revoluções do pensamento... só tecnologia que nessa altura será chamada "Ciência". Ressurgirão os localismos, as lutas étnicas e os povos postergados abalançar-se-ão sobre os centros de decisão num turbilhão em que as macrocidades, anteriormente superpovoadas, ficarão desabitadas. Contínuas guerras civis sacudirão este pobre planeta em que não desejaremos viver.

Enfim, esta é a parte do conto que se tem repetido em numerosas civilizações que, num dado momento, creram no seu progresso infinito. Todas essas culturas terminaram na dissolução, mas, afortunadamente, quando umas caíram noutros pontos erigiram--se novos impulsos humanos e, nessa alternância, o velho foi superado pelo novo. É claro que num sistema mundial fechado não sobra espaço para o surgimento de outra civilização, mas sim para uma longa e escura idade média mundial.

Se o que se perspectiva nas cartas com base no modelo explicado é de todo incorrecto, não temos razão para nos preocuparmos. Se, ao invés, o processo mecânico das estruturas históricas leva a direcção comentada, é hora de se peguntar como pode o ser humano mudar a direcção dos acontecimentos. Por sua vez, quem poderia produzir essa formidável mudança de direcção senão os povos que são, precisamente o sujeito da História? Teremos chegado a um estado de maturidade suficiente para compreender que a partir de agora não haverá progresso se não é de todos e para todos? Esta é a segunda hipótese que se explora nas Cartas.

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Se encarna nos povos a ideia de que (e é bom repeti-lo) não haverá progresso se não é de todos e para todos, então a luta será clara. No último escalão da desestruturação, na base social, começarão a soprar os novos ventos. Nos bairros, nas comunidades de vizinhos, nos locais de trabalho mais humildes começará a regenerar-se o tecido social. Este será, aparentemente, um fenómeno espontâneo. Repetir-se-á no surgimento de múltiplas agrupações de base que os trabalhadores já libertos da tutela das cúpulas sindicais formarão. Aparecerão numerosos agrupamentos políticos, sem organização central, em luta com as organizações políticas cupulares. Começará a discussão em cada fábrica, em cada escritório, em cada empresa. A partir das reivindicações imediatistas ir-se-á ganhando consciência da situação mais ampla, na qual o trabalho terá mais valor humano que o capital e na qual o risco do trabalho será mais claro que o risco do capital na hora de considerar prioridades. Chegar-se-á facilmente à conclusão de que o lucro da empresa deve ser reinvestido na abertura de novas fontes de trabalho ou derivar para outros sectores nos quais a produção continue a aumentar em vez de derivar para franjas especulativas que acabam por engrossar o capital financeiro, que produzem esvaziamento empresarial e que levam à posterior quebra do aparelho produtivo. O empresário começará a dar-se conta de que se converteu em simples empregado da Banca e que, nesta emergência, o seu aliado natural é o trabalhador. O fermento social começará novamente a activar-se e desencadear-se-á a luta clara e franca entre o capital especulativo, no seu nítido carácter de força abstracta e desumana, e as forças do trabalho, verdadeira alavanca da transformação do mundo. Começará a compreender-se de uma vez por todas que o progresso não depende da dívida que se contrai junto dos bancos, mas sim que os bancos devem atribuír créditos à empresa sem cobrar juros. E também se tornará claro que não haverá forma de descongestionar a concentração que conduz ao colapso se não é mediante uma redistribuição da riqueza a favor das áreas postergadas. A Democracia real, plebiscitária e directa será uma necessidade porque se quererá saír da agonia da não-participação e da ameaça constante da revolta popular. Os poderes serão reformados porque já terá perdido toda a credibilidade e todo o significado a estrutura da democracia formal dependente do capital financeiro. Este segundo libreto de crise apresentar-se-á, sem dúvida, depois de um período de incubação em que os problemas se agudizarão. Então, começará essa série de avanços e retrocessos em que cada êxito será multiplicado como efeito demonstração nos lugares mais remotos graças às comunicações instantâneas. Nem sequer se tratará da conquista dos Estados nacionais, mas sim de uma situação mundial em que se irão multiplicando estes fenómenos sociais antecessores de uma mudança radical na direcção dos acontecimentos. Deste modo, em vez do processo desembocar no colapso mecânico tantas vezes repetido, a vontade de mudança e de direcção dos povos começará a percorrer o caminho rumo à nação humana universal.

É nesta segunda possibilidade, é nesta segunda alternativa que apostam os humanistas de hoje. Têm demasiada fé no ser humano para crer que tudo terminará estupidamente. E ainda que não se sintam a vanguarda do processo humano, dispõem-se a acompanhar esse processo na medida das suas forças e ali onde estejam posicionados.

Não quero tomar mais tempo a comentar o livro que hoje temos nas nossas mãos. Desejaria somente reconhecer a paciência e a tolerância que vocês mostraram ao seguir esta aborrecida exposição.

Nada mais, muito obrigado.

Silo
Santiago do Chile. Maio de 1994


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