[ Cartas aos meus Amigos ]

[ Qualquer sugestão é bem vinda ]

  Oitava carta aos meus amigos
  1. Necessidade de uma redefinição do papel das forças armadas
  2. Permanência de factores agressivos na etapa de distensão
  3. Segurança interior e reestruturação militar
  4. Revisão dos conceitos de soberania e segurança
  5. A legalidade e os limites do poder vigente
  6. A responsabilidade militar perante o poder político
  7. Reestruturação militar
  8. A posição militar no processo revolucionário
  9. Considerações em torno dos exércitos e da revolução

Estimados amigos:

De acordo com o anunciado na carta anterior, tocarei na presente alguns pontos referidos aos exércitos. Evidentemente, o interesse deste escrito estará centrado na relação entre as forças armadas, o poder político e a sociedade. Tomarei como base o documento discutido há três meses em Moscovo (sob o título de A Necessidade de uma Posição Humanista nas Forças Armadas Contemporâneas - Conferência internacional sobre humanização das actividades militares e reforma das Forças Armadas, patrocinada pelo Ministério de Defesa da C.E.I. - Moscovo, 24/28 de Maio de 1993). Só me afastarei dos conceitos vertidos no documento original ao tratar a posição militar no processo revolucionário, tema este que me permitirá completar algumas ideias esboçadas anteriormente.

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1. Necessidade de uma redefinição do papel das forças armadas

As forças armadas estão hoje a tratar de definir o seu novo papel. Esta situação começou após as iniciativas de desarmamento proporcional e progressivo empreendidas pela União Soviética nos finais da década de 80. A diminuição da tensão que existiu entre as superpotências provocou uma reviravolta no conceito de defesa nos países mais importantes. No entanto, a substituição gradual dos blocos político-militares (particularmente do Pacto de Varsóvia) por um sistema de relações relativamente cooperativas activou forças centrífugas que levam a novos choques em diferentes pontos do planeta. Certamente, em pleno período da Guerra Fria, os conflitos em áreas restritas eram frequentes e muitas vezes prolongados, mas o carácter actual destes mudou de signo, ameaçando estender-se nos Balcãs, no mundo muçulmano e em várias zonas da Ásia e África.

A reivindicação limítrofe que outrora preocupava forças armadas contíguas, hoje toma outra direcção dada a tendência para a secessão no interior de alguns países. As disparidades económicas, étnicas e linguísticas tendem a modificar fronteiras que se supunham inalteráveis, ao mesmo tempo que ocorrem migrações em grande escala. Trata-se de grupos humanos que se mobilizam para fugir de situações desesperadas, ou para conter ou expulsar de áreas definidas outros grupos humanos.

Este e outros fenómenos mostram mudanças profundas, particularmente na estrutura e na concepção do Estado. Por um lado, assistimos a um processo de regionalização económica e política; por outro, observamos a discórdia crescente no interior de países que caminham para essa regionalização. É como se o Estado nacional, desenhado há duzentos anos, não aguentasse mais os golpes que lhe ministram as forças multinacionais por cima e as forças da secessão por baixo. Cada vez mais dependente, cada vez mais preso à economia regional e cada vez mais comprometido na guerra comercial contra outras regiões, o Estado sofre uma crise sem precedentes no controlo da situação. As suas Leis Fundamentais são modificadas para dar lugar à deslocação de capitais e recursos financeiros; os seus códigos e leis civis e comerciais tornam-se obsoletos. Até a tipificação penal varia, já que hoje pode ser sequestrado um cidadão cujo delito será julgado noutro país por magistrados de outra nacionalidade e com base em leis estrangeiras. Assim, o velho conceito de soberania nacional fica sensivelmente diminuído. Todo o aparelho jurídico-político do Estado, as suas instituições e o pessoal afecto ao seu serviço imediato ou mediato sofrem os efeitos dessa crise geral. Essa é também a situação que atravessam as Forças Armadas, às quais a seu tempo se atribuiu o papel de defensoras da soberania e da segurança geral. Privatizada a educação, a saúde, as comunicações, as reservas naturais e até importantes áreas da segurança civil; privatizados os bens e serviços, diminui a importância do Estado tradicional. É coerente pensar que se a administração e os recursos de um país saiem da área de controlo público, a Justiça seguirá o mesmo processo e adscrever-se-á às Forças Armadas o papel de milícia privada destinada à defesa de interesses económicos vernáculos ou multinacionais. Essas tendências têm vindo a aumentar ultimamente no interior dos países.

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2. Permanência de factores agressivos na etapa de distensão

Ainda não desapareceu a agressividade de potências que, a seu tempo, deram por concluída a Guerra Fria. Actualmente, existem violações de espaços aéreos e maríti-mos; aproximações imprudentes a territórios longínquos; incursões e instalação de bases; afiançamentos de pactos militares; guerras e ocupação de territórios estrangeiros pelo controlo de vias de navegação ou possessão de fontes de recursos naturais. Os antecedentes estabelecidos pelas guerras da Coreia, Vietname, Laos e Camboja; pelas crises do Suez, Berlim e Cuba, pelas incursões em Granada, Trípolis e Panamá mostraram ao mundo a desproporção da acção bélica tantas vezes aplicada sobre países indefesos e pesam na hora de falar de desarmamento. Estes factos adquirem especial gravidade porque, em casos como o da Guerra do Golfo, se realizam nos flancos de países de grande importância, que poderiam interpretar tais manobras como sendo lesivas para a sua segurança. Esses excessos estão a produzir efeitos residuais nocivos ao fortalecer a frente interna de sectores que julgam os seus governos incompetentes para travar esses avanços. Isto, desde logo, pode chegar a comprometer o clima de paz internacional tão necessário no momento actual.

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3. Segurança interior e reestruturação militar

No que diz respeito à segurança interna, é necessário citar dois problemas que parecem perfilar-se no horizonte dos acontecimentos imediatos: as explosões sociais e o terrorismo.

Se é certo que a desocupação e a recessão tendem a crescer nos países industrializados, é possível que estes sejam palco de convulsões ou desordens, invertendo-se, em alguma medida, o quadro que se apresentava em décadas anteriores em que o conflito se desenrolava nas periferias de um centro que continuava a crescer sem sobressalto. Acontecimentos como os de Los Angeles, o ano passado, poderiam estender-se a mais de uma cidade e inclusivamente a otros paises. Por último, o fenómeno do terrorismo vislumbra-se como perigo de proporções dado o poder de fogo com que podem hoje contar indivíduos e grupos relativamente especializados. Esta ameaça, que chegaria a expressar-se por meio do artefacto nuclear, ou de explosivos deflagrantes e moleculares de alto poder, atinge também outra áreas como a das armas químicas e bacteriológicas de reduzido custo e fácil produção.

São, pois, muitas e numerosas as preocupações das Forças Armadas, dado o panorama instável do mundo de hoje. Por outro lado, e além dos problemas estratégicos e políticos que estas têm de considerar, estão os temas internos de reestruturação, de dispensa de importantes contingentes de tropas, do modo de recrutamento e formação, de renovação de material, de modernização tecnológica e, primariamente, de recursos económicos. Porém, se bem que se devem compreender a fundo os problemas de contexto que mencionámos, há-de acrescentar-se que nenhum deles poderá ser resolvido cabalmente se não se clarifica qual a função primária que devem cumprir os exércitos. Ao fim e ao cabo, é o poder político que dá a sua orientação às Forças Armadas e são estas que actuam com base nessa orientação.

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4. Revisão dos conceitos de soberania e segurança

Na concepção tradicional deu-se às Forças Armadas a função de resguardar a soberania e a segurança dos países, dispondo do uso da força de acordo com o mandato dos poderes constituídos. Deste modo, o monopólio da violência que cabe ao Estado, transfere-se para os corpos militares. Mas eis um primeiro ponto de discussão àcerca do que se deve entender por "soberania" e por "segurança". Se estas, ou mais modernamente o "progresso" de um país, requerem fontes de aprovisionamento extraterritoriais; navegabilidade marítima indiscutível para proteger a deslocação de mercadorias; controlo de pontos estratégicos com o mesmo fim e ocupação de territórios alheios, estamos perante a teoria e a prática colonial ou neo-colonial. No colonialismo, a função dos exércitos consiste em abrir caminho primeiramente aos interesses das coroas da época e depois às companhias privadas que obtêm concessões especiais do poder político em troca de réditos convenientes. A ilegalidade desse sistema foi justificada pela suposta barbárie dos povos ocupados, incapazes de terem por si mesmos uma administração adequada. A ideologia correspondente a esta etapa consagrou o colonialismo como o sistema "civilizador" por excelência.

Na época do imperialismo napoleónico, a função do exército, que por outro lado ocupa o poder político, consistiu em expandir fronteiras com o objectivo declamado de redimir os povos oprimidos pelas tiranias, mercê da acção bélica e da instauração de um sistema administrativo e jurídico que consagrou nos seus códigos a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. A ideologia correspondente justificou a expansão imperial com base no critério de "necessidade" de um poder constituído pela revolução democrática face a monarquias ilegais baseadas na desigualdade, as quais, além do mais, fazem frente comum para asfixiar a Revolução.

Mais recentemente, e seguindo os ensinamentos de Clausewitz, tem-se entendido a guerra como simples continuação da política e o Estado, promotor dessa política, foi considerado como o aparelho de governo de uma sociedade radicada em certos limites geográficos. Desde aí chegou-se a definições, caras aos geo-políticos, em que as fronteiras aparecem como "a pele do Estado". Em tal concepção organológica, esta "pele" contrai-se ou expande-se de acordo com o tom vital dos países e assim deve ampliar-se com o desenvolvimento de uma comunidade que reclama "espaço vital", dada a sua concentração demográfica ou económica. Desta perspectiva, a função do exército é ganhar espaço conforme é reclamado por essa política de segurança e soberania, que é primária relativamente às necessidades de outros países limítrofes. Aqui, a ideologia dominante proclama a desigualdade das necessidades que experimentam as colectividades de acordo com as suas características vitais. Esta visão zoológica da luta pela sobrevivência do mais apto rememora as concepções do darwinismo, transportadas ilegítimamente para a prática política e militar.

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5. A legalidade e os limites do poder vigente

Contemporâneamente, flutua no ar muito das três concepções que usámos para exemplificar como os exércitos respondem ao poder político e se enquadram segundo os ditames que, ocasionalmente, este entende sobre segurança e soberania. De maneira que se a função do exército é servir o Estado no que respeita a segurança e soberania e a concepção destes dois pontos varia de governo para governo, as Forças Armadas terão que ater-se a isso. Admite isto algum limite ou excepção? Claramente observam-se duas excepções: 1. - Aquela em que o poder político se constituíu ilegítimamente e se esgotaram os recursos civis para mudar essa situação anómala e 2. - Aquela em que o poder político se constituíu legalmente, mas no seu exercício se converte em ilegal, tendo-se esgotado os recursos civis para mudar a situação anómala. Em ambos os casos, as Forças Armadas têm o dever de restabelecer a legalidade interrompida, o que equivale a continuar os actos que por via civil não se puderam concluir. Nestas situações, o exército deve-se à legalidade e não ao poder vigente. Não se trata, então, de propiciar um estado deliberativo do exército, mas sim de destacar a prévia interrupção da legalidade realizada por um poder vigente de origem delitual ou que se converteu em delitual. A pergunta que se deve fazer é: de onde provém a legalidade e quais são as suas características? Respondemos que a legalidade provém do povo que é quem deu a si próprio um tipo de Estado e um tipo de leis fundamentais a que se devem submeter os cidadãos. E no caso extremo em que o povo decidisse modificar esse tipo de Estado e esse tipo de leis, incumbir-lhe-ia fazê-lo não podendo existir uma estrutura estatal e um sistema legal por cima daquela decisão. Este ponto leva-nos a considerar o facto revolucionário, que trataremos mais adiante.

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6. A responsabilidade militar perante o poder político

Tem de se salientar que os corpos militares devem estar formados por cidadãos responsáveis pelas suas obrigações relativamente à legalidade do poder estabelecido. Se o poder estabelecido funciona com base numa democracia real em que se respeita a vontade maioritária por eleição e renovação dos representantes populares, se respeita as minorias nos termos consagrados pelas leis e se respeita a separação e independência entre poderes, então não cabe às Forças Armadas deliberar àcerca dos acerto ou erros desse governo. Do mesmo modo que na implantação de um regime ilegal as Forças Armadas não podem sustentá-lo mecanicamente, invocando uma "obediência devida" a esse regime. Mesmo chegando ao conflito internacional, as Forças Armadas também não podem praticar o genocídio seguindo instruções de um poder febril devido à anormalidade da situação. Porque se os Direitos Humanos não estão por cima de qualquer outro Direito, não se entende para que existe organização social nem Estado. E ninguém pode invocar "obediência devida" quando se trata do assassinato, da tortura e da degradação do ser humano. Se alguma coisa ensinaram os tribunais criados após a Segunda Guerra Mundial foi que o homem de armas tem responsabilidades como ser humano, mesmo na situação-limite do conflito bélico.

Neste ponto, poder-se-á perguntar: não é o exército uma instituição cuja preparação, disciplina e equipamento o converte em factor primário de destruição? Respondemos que as coisas estão montadas assim desde muito tempo antes da situação actual e que, independentemente da aversão que sentimos por todas as formas de violência, não podemos conceber a desaparição ou o desarmamento unilateral de exércitos criando vazios que seriam preenchidos por outras forças agressivas, tal como mencionámos anteriormente quando nos referimos aos ataques realizados a países indefesos. São as próprias Forças Armadas que têm uma importante missão a cumprir não obstruindo a filosofia e a prática do desarmamento proporcional e progressivo, inspirando, além do mais, os camaradas de outros países nessa direcção e deixando claro que a função castrense no mundo de hoje consiste em evitar catástrofes e servidões ditadas por governos ilegais que não respondem ao mandato popular. Então, o maior serviço que as forças armadas poderão prestar aos seus países e a toda a humanidade será evitar que existam as guerras. Esta ideia, que pode parecer utópica, está avalizada actualmente pela força dos factos que demonstram a pouca praticidade e a perigosidade para todos quando aumenta o poder bélico global ou unilateral.

Gostaria de voltar ao tema da responsabilidade militar através de uma exemplificação inversa. Durante a época da Guerra Fria, repetia-se no Ocidente uma mensagem dupla: por um lado, a NATO e outros blocos estabeleciam-se para defender um estilo de vida ameaçado pelo comunismo soviético e, ocasionalmente, chinês. Por outro, empreendiam-se acções militares em áreas distantes para proteger os "interesses" das potências. Na América Latina, o golpe de Estado dado pelos exércitos da zona tinha preferências pela ameaça da subversão interna. Alí, as Forças Armadas deixavam de responder ao poder político e levantavam-se contra todo o Direito e contra toda a Constituição. Práticamente, um continente se encontrava militarizado, respondendo à chamada "Doutrina da Segurança Nacional". A sequela de morte e atraso que deixaram atrás de si aquelas ditaduras, foi singularmente justificada ao longo da cadeia de comando pela ideia da "obediência devida". Com ela explicou-se que na disciplina castrense se seguem as ordens da chefia imediata. Esta perspectiva, que faz recordar as justificações dos genocidas do nazismo, é um ponto que deve ser considerado na hora de discutir os limites da disciplina castrense. O nosso ponto de vista quanto a este aspecto, como já comentámos, é que se o exército quebra a dependência em relação ao poder político, constitui-se numa força irregular, num bando armado fora da lei. Este ponto é claro mas admite uma excepção: o levantamento militar contra um poder político estabelecido ilegalmente ou que se pôs em situação facciosa. As Forças Armadas não podem invocar "obediência devida" a um poder ilegal porque se convertem em sustentáculos dessa irregularidade, assim como noutras circunstâncias também não podem produzir o golpe militar fugindo à função de cumprir o mandato popular. Isto quanto à ordem interna e, em relação ao facto bélico internacional, não podem atentar contra a população civil do país inimigo.

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7. Reestruturação militar

Em ordem ao recrutamento dos cidadãos, o nosso ponto de vista é favorável à substituição do serviço militar obrigatório pelo serviço militar voluntário, sistema este que permitirá uma maior qualificação do soldado profissional. Porém, a essa limitação de tropas corresponderá também uma redução importante do pessoal de quadros e do pessoas de chefia. E é claro que não se efectuará uma reestruturação adequada sem prestar atenção aos problemas pessoais, familiares e sociais que isto poderá acarretar em numerosos exércitos que hoje mantêm um esquema sobredimensionado. A nova colocação laboral, geográfica e de inserção social desses contingentes será equlibrada se se mantém uma relação militar flexível durante o tempo que requeira a recolocação. Na reestruturação que hoje tem lugar em diversas partes do mundo, deve ter-se em conta primariamente o modelo de país em que se efectua. Naturalmente, um sistema unitário tem características diferentes de um federativo ou de diferentes países que estão a confluir numa comunidade regional. O nosso ponto de vista, favorável ao sistema federativo e aberto à confederação regional requer, para o correcto desenho da reestruturação, compromissos sólidos e permanentes que permitam continuidade no projecto. Se não existe uma vontade clara das partes nesta direcção, a reestruturação não será possível porque o contributo económico de cada integrante estará submetido a vaivéns políticos ocasionais. Sendo esse o caso, as tropas federais poderão existir só formalmente e os contingentes militares serão simplesmente o somatório do potencial de cada comunidade que faz parte da federação. Isto trará também problemas de difícil solução quanto ao comando unificado. Em suma, será a orientação política que terá que dar as pautas e, nessa situação, as forças armadas particulares requerirão uma muito precisa e coordenada condução.

Um problema de relativa importância na reestruturação é aquele que se refere a certos aspectos das forças de segurança. As forças de segurança, se não são militarizadas, actuam em relação à ordem interna e com referência à protecção dos cidadãos, ainda que estejam habitualmente involucradas em operações de controlo muito distantes do fim para que foram criadas. O organigrama em que se inscrevem em muitos países fá-las depender directamente das pastas políticas, tais como o Ministério da Administração Interna, diferente do Ministério da Guerra ou da Defesa. Por outro lado, as polícias, entendidas como servidoras da cidadania e dispostas de maneira a que se cumpra uma ordem jurídica não lesiva para os habitantes de um país, têm um carácter acessório e sob jurisdição do poder Judicial. Porém, muitas vezes, pelo seu carácter de força pública, realizam operações que aos olhos dos cidadãos as fazem aparecer como forças militares. Percebe-se claramente a inconveniência dessa confusão e é do interesse das Forças Armadas que estas distinções fiquem claras. Outro tanto acontece com os diferentes organismos do Estado que manejam corpos secretos e de informações, imbricados e sobrepostos, que também não têm que ver com o regime castrense. Os exércitos requerem um adequado sistema de informações que lhes permitam operar com eficiência e que não se assemelham nada a mecanismos de controlo e seguimento da cidadania, porque a sua função diz respeito à segurança da Nação e não ao beneplácito ou à reprovação ideológica do governo de turno.

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8. A posição militar no processo revolucionário

Supõe-se que numa democracia o poder provém da soberania popular. Tanto a conformação do Estado como a dos organismos que de ele dependem derivam da mesma fonte. Assim, o exército cumpre com a função que lhe outorga o Estado para defender a soberania e dar segurança aos habitantes de um país. Desde logo, podem ocorrer aberrações segundo seja o exército ou uma facção que ocupem ilegalmente o poder, conforme vimos anteriormente. Porém, como também mencionámos, poderia suceder o caso extremo em que o povo decidisse mudar esse tipo de Estado e esse tipo de leis, quer dizer, esse tipo de sistema. Incumbiria ao povo fazê-lo, não podendo existir uma estrutura estatal e um sistema legal por cima daquela decisão. Sem dúvida que as cartas constitucionais de muitos países contemplam a possibilidade de que elas mesmas sejam modificadas por decisão popular. Desta maneira poderia ocorrer uma mudança revolucionária na qual a democracia formal dê lugar à democracia real. Mas se se obstruisse esta possibilidade estar-se-ia a negar a própria origem de onde brota toda a legalidade. Em tal circunstância, e tendo-se esgotado todos os recursos civis, é obrigação do exército cumprir com essa vontade de mudança apeando a uma facção instalada, já ilegalmente, no manejo da coisa pública. Chegar-se-ia desse modo, mediante a intervenção militar, à criação de condições revolucionárias nas quais o povo põe em marcha um novo tipo de organização social e um novo regime jurídico. Não é necessário destacar as diferenças entre a intervenção militar que tem como objectivo devolver ao povo a sua soberania arrebatada, e o simples golpe militar que rompe a legalidade estabelecida por mandato popular. Em ordem às mesmas ideias, a legalidade exige que se respeite a vontade do povo mesmo no caso de que este proponha mudanças revolucionárias. Porque é que as maiorias não haveriam de expressar o seu desejo de mudança de estruturas e, ainda, porque é que não haveriam as minorias de ter a oportunidade de trabalhar politicamente para conseguir uma modificação revolucionária da sociedade? Negar por meio da repressão e da violência a vontade de mudança revolucionária compromete seriamente a legalidade do sistema das actuais democracias formais.

Ter-se-á observado que não aflorámos assuntos relativos à estratégia nem à doutrina militar, nem tão-pouco questões de tecnologia e organização castrense. Não poderia ser de outro modo. Nós estabelecemos o ponto de vista humanista sobre as Forças Armadas relacionadas com o poder político e com a sociedade. São os Homens de armas que tem pela frente um enorme trabalho teorético e de implementação prática para adaptar esquemas a este momento tão especial que está a viver o mundo. A opinião da sociedade e o genuíno interesse das Forças Armadas em conhecer essa opinião, ainda que não seja especializada, é de fundamental importância. Paralelamente, uma relação viva entre membros de exércitos de diferentes países e a discussão franca com a sociedade civil é um passo importante em ordem ao reconhecimento da pluralidade dos pontos de vista. Os critérios de isolamento de uns exércitos relativamente a outros e de ensimesmamento com respeito às reclamações do povo são próprios de uma época em que o intercâmbio humano e objectal estava restringido. O mundo mudou para todos, também para as forças armadas.

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9. Considerações em torno dos exércitos e da revolução

Hoje impõem-se duas opiniões que nos interessam especialmente. A primeira anuncia que a época das revoluções passou; a segunda, que o protagonismo militar na tomada de decisões políticas se atenua gradualmente. Também se supõe que somente em certos países atrasados ou desorganizados permanecem ameaçadoras aquelas rémoras do passado. Por outro lado, pensa-se que o sistema de relações internacionais, ao tomar um carácter cada vez mais sólido, irá fazendo sentir o seu peso até que aquelas antigas irregularidades vão entrando na linha. Sobre a questão das revoluções, como já se expôs, temos um diametral ponto de vista. Quanto a que o concerto de nações "civilizadas" vá impôr uma Nova Ordem em que não haja lugar para a decisão militar, é tema por demais discutível. Nós destacamos que é, precisamente, nas nações e regiões que vão tomando carácter imperial onde as revoluções e a decisão militar irão fazendo sentir a sua presença. Mais cedo ou mais tarde, as forças do dinheiro, cada vez mais concentradas, enfrentar-se-ão às maiorias e, nessa situação, banca e exército tornar-se-ão termos antitéticos. Estamos, pois, situados nos antípodas da interpretação dos processos históricos. Só os tempos já próximos irão pôr em evidência a correcta percepção dos factos, que para alguns, seguindo a tradição dos últimos anos, serão "incríveis". Com aquela visão, que se dirá quando isto aconteça? Provavelmente que a humanidade voltou ao passsado ou, mais vulgarmente, que "o mundo enlouqueceu". Nós cremos que fenómenos como o irracionalismo crescente, o surgimento de uma forte religiosidade e outros tantos mais não estão situados no passado, mas sim que correspondem a uma nova etapa que haverá que enfrentar com toda a valentia intelectual e com todo o compromisso humano de que formos capazes. Em nada ajudará continuar a sustentar que o melhor desenvolvimento da sociedade se corresponde com o mundo actual. Mais importante será compreender que a situação que estamos a viver leva directamente ao colapso de todo um sistema que alguns consideram defeituoso mas "aperfeiçoável". Não existe esse sistema actual "aperfeiçoável". Pelo contrário, nele chega ao máximo a desumanidade de todos os factores que se foram amassando ao longo de muitos anos. Se alguém julga estas afirmações como destituídas de fundamento, está em todo o seu direito na condição de apresentar por seu lado uma posição coerente. E se pensa que a nossa posição é pessimista, afirmamos que face a este processo mecânico negativo, prevalecerá a direcção rumo à humanização do mundo, empurrada pela revolução que acabarão por produzir os grandes conjuntos humanos, hoje em dia despojados do seu próprio destino.

Recebam com esta carta os meus melhores cumprimentos.

Silo
10/08/93


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