[ Cartas aos meus Amigos ]

[ Qualquer sugestão é bem vinda ]

  Quarta carta aos meus amigos
  1. Arranque das nossas ideias
  2. Natureza, intenção e abertura do ser humano
  3. A abertura social e histórica do ser humano
  4. A acção transformadora do ser humano
  5. A superação da dor e do sofrimento como projectos vitais básicos
  6. Imagem, crença, olhar e paisagem
  7. As gerações e os momentos históricos
  8. A violência, o Estado e a concentração de poder
  9. O processo humano

Estimados amigos:

Em cartas anteriores dei a minha opinião sobre a sociedade, os grupos humanos e os indivíduos em relação a este momento de mudança e perda de referências que nos cabe viver; critiquei certas tendências negativas no desenvolvimento dos acontecimentos e destaquei as posturas mais conhecidas de quem pretende dar resposta às urgências do momento. É claro que todas as apreciações, bem ou mal formuladas, correspondem ao meu particular ponto de vista e este, por sua vez, situa-se num conjunto de ideias que lhe servem de base. Certamente por isto, recebi sugestões a animar-me a explicitar a partir de "onde" faço as minhas críticas ou desenvolvo as minhas propostas. Ao fim e ao cabo, pode-se dizer qualquer coisa com muita ou pouca originalidade, como sucede com as ideias que diariamente nos passam pela cabeça e que não pretendemos justificar. Essas ideias hoje podem ser de um tipo e amanhã do tipo oposto, não passando da frivolidade da apreciação quotidiana. Por isso, em geral, cada dia acreditamos menos nas opiniões dos outros e de nós próprios, dando por assente que se tratam de apreciações de conjuntura que podem mudar em poucas horas, como acontece com as oportunidades da Bolsa. E se nas opiniões há algo com maior permanência é, na melhor das hipóteses, o consagrado pela moda, que depois é substituído pela moda seguinte. Não estou a fazer uma defesa do imobilismo no campo das opiniões, mas sim a destacar a falta de consistência nas mesmas, porque, na verdade, seria muito interessante que a mudança se desse com base numa lógica interna e não de acordo com o sopro de ventos erráticos. Mas quem é que está disposto a aguentar lógicas internas numa época de palmadas de afogado! Agora mesmo, enquanto escrevo, noto que o que se disse não pode entrar na cabeça de certos leitores porque, nesta altura, não terão encontrado três possíveis códigos exigidos por eles: 1. que o que se está a explicar lhes sirva de passatempo, ou 2. que lhes mostre de seguida como podem utilizá-lo no seu negócio, ou 3. que coincida com o consagrado pela moda. Tenho a certeza de que esta conversa que começa com "Estimados amigos:" e que chega até aqui, deixa-os totalmente desorientados como se estivéssemos a escrever em sânscrito. No entanto, é de registar como essas mesmas pessoas compreendem coisas difíceis que vão desde as operações bancárias mais sofisticadas até às delícias da técnica administrativa computada. A esses, torna-se-lhes impossível compreender que estamos a falar das opiniões, dos pontos de vista e das ideias que lhes servem de base; que estamos a falar da impossibilidade de sermos entendidos nas coisas mais simples se não têm correspondência com a paisagem que têm armada pela sua educação e pelas suas compulsões. Assim estão as coisas!

Esclarecido o anterior, tratarei de resumir nesta carta as ideias que fundamentam as minhas opiniões, críticas e propostas, tendo especial cuidado de não ir muito além do slogan publicitário, porque, como explica o sábio jornalismo especializado, as ideias organizadas são "ideologias" e estas, como as doutrinas, são ferramentas de lavagem ao cérebro daqueles que se opõem à liberdade de comércio e economia social de mercado das opiniões. Hoje, respondendo às exigências do Pós-modernismo, quer dizer, às exigências da haute-couture (roupa de noite, gravata tipo laço, ombreiras, sapatilhas e casaco arregaçado); da arquitectura desconstrutivista e da decoração desestruturada, estamos compelidos a que não encaixem as peças do discurso. E a não esquecer que a crítica da linguagem também repudia o sistemático, estrutural e processual!... É claro que tudo isto tem correspondência com a ideologia dominante da Empresa que sente horror pela História e pelas ideias em cuja formação não participou e entre as quais não pôde colocar uma substancial percentagem de acções.

Brincadeiras à parte, comecemos já o inventário das nossas ideias, pelo menos das que consideramos mais importantes. Devo realçar que boa parte delas foram apresentadas na conferência que dei em Santiago de Chile em 23/05/91.

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1. Arranque das nossas ideias.

A nossa concepção não se inicia admitindo generalidades, mas sim estudando o particular da vida humana; o particular da existência; o particular do registo pessoal do pensar, do sentir e do actuar. Esta postura inicial torna-a incompatível com todo o sistema que arranque da "ideia", da "matéria", do "inconsciente", da "vontade", da "sociedade", etc. Se alguém admite ou rejeita qualquer concepção, por lógica ou extravagante que esta seja, sempre será ele próprio que está em jogo, admitindo ou rejeitando: ele estará em jogo, não a sociedade, ou o inconsciente ou a matéria.

Falemos, pois, da vida humana. Quando me observo, não do ponto de vista fisiológico, mas sim existencial, encontro-me posto num mundo dado, não construído nem escolhido por mim. Encontro-me em situação relativamente a fenómenos que, começando pelo meu próprio corpo, são ineludíveis. O corpo, como constituinte fundamental da minha existência, é, além do mais, um fenómeno homogéneo com o mundo natural em que actua e sobre o qual actua o mundo. Mas a naturalidade do corpo tem para mim diferenças importantes relativamente ao resto dos fenómenos, a saber: 1. o registo imediato que dele possuo; 2. o registo que através dele tenho dos fenómenos externos; e 3. a disponibilidade de alguma das suas operações mercê da minha intenção imediata.

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2. Natureza, intenção e abertura do ser humano.

Porém, acontece que o mundo me aparece não só como um aglomerado de objectos naturais, mas sobretudo como uma articulação de outros seres humanos e de objectos e signos produzidos ou modificados por eles. A intenção que noto em mim, aparece como um elemento interpretativo fundamental do comportamento dos outros e assim como constituo o mundo social por compreensão de intenções, sou constituído por ele. Desde logo, estamos a falar de intenções que se manifestam na acção corporal. É graças às expressões corporais ou à percepção da situação em que se encontra o outro, que posso compreender os seus significados, a sua intenção. Por outro lado, os objectos naturais e humanos aparecem-me como sendo prazenteiros ou dolorosos e trato de colocar-me face a eles modificando a minha situação.

Deste modo, não estou fechado ao mundo do natural e dos outros seres humanos, antes pelo contrário, a minha característica é precisamente a "abertura". A minha consciência configurou-se intersubjectivamente já que usa códigos de raciocínio, modelos emotivos, esquemas de acção que registo como sendo "meus", mas que também reconheço noutros. E, desde logo, está o meu corpo aberto ao mundo enquanto o percepciono e sobre ele actuo. O mundo natural, à diferença do humano, aparece-me sem intenção. Claro que posso imaginar que as pedras, as plantas e as estrelas possuem intenção, mas não vejo como chegar a um efectivo diálogo com elas. Mesmo os animais em que, às vezes, capto a chispa da inteligência, aparecem-me impenetráveis e em lenta modificação de dentro da sua natureza. Vejo sociedades de insectos totalmente estruturadas, mamíferos superiores a usar rudimentos técnicos, mas repetindo os seus códigos em lenta modificação genética, como se fossem sempre os primeiros representantes das suas respectivas espécies. E quando comprovo as virtudes dos vegetais e dos animais modificados e domesticados pelo Homem, observo a intenção deste a abrir-se caminho e a humanizar o mundo.

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3. A abertura social e histórica do ser humano.

É-me insuficiente a definição do Homem pela sua sociabilidade, já que isto não contribui para a distinção em relação a numerosas espécies; a sua força de trabalho também não é o característico, comparada com a de animais mais poderosos; nem sequer a linguagem o define na sua essência, porque sabemos de códigos e formas de comunicação entre diversos animais. Ao invés, ao encontrar-se cada novo ser humano com um mundo modificado por outros e ao ser constituído por esse mundo intencionado, descubro a sua capacidade de acumulação e incorporação no temporal; descubro a sua dimensão histórico-social, não simplesmente social. Vistas assim as coisas, posso tentar uma definição, dizendo: o Homem é o ser histórico cujo modo de acção social transforma a sua própria natureza. Se admito isto, terei de aceitar que esse ser pode transformar intencionalmente a sua constituição física. E assim está a acontecer. Começou com a utilização de instrumentos que, postos adiante do seu corpo como "próteses" externas, lhe permitiram alongar a sua mão, aperfeiçoar os seus sentidos e aumentar a sua força e qualidade de trabalho. Naturalmente não estava dotado para os meios líquido e aéreo e, no entanto, criou condições para se deslocar neles, até começar a emigrar do seu meio natural, o planeta Terra. Hoje, além disso, está a internar-se no seu próprio corpo mudando os seus órgãos; intervindo na sua química cerebral; fecundando in vitro e manipulando os seus genes. Se, com a ideia de "natureza", se quis assinalar o permanente, tal ideia é hoje inadequada, ainda que se queira aplicá-la ao mais objectal do ser humano, isto é, ao seu corpo. E no que se refere a uma "moral natural", a um "direito natural" ou a "instituições naturais", encontramos, opostamente, que nesse campo tudo é histórico-social e nada aí existe por natureza.

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4. A acção transformadora do ser humano.

Contígua à concepção da natureza humana tem estado a operar outra que nos falou da passividade da consciência. Esta ideologia considerou o Homem como uma entidade que operava em resposta aos estímulos do mundo natural. O que começou em tosco sensualismo, pouco a pouco foi afastado por correntes historicistas que conservaram no seu seio a mesma ideia em torno da passividade. E ainda quando privilegiaram a actividade e a transformação do mundo em relação à interpretação dos seus factos, conceberam a referida actividade como resultante de condições externas à consciência. Porém, aqueles antigos preconceitos em torno da natureza humana e da passividade da consciência hoje impõem-se, transformados em neo-evolucionismo, com critérios tais como a selecção natural que se estabelece na luta pela sobrevivência do mais apto. Tal concepção zoológica, na sua versão mais recente, ao ser transplantada para o mundo humano, tratará de superar as anteriores dialécticas de raças ou de classes com uma dialéctica estabelecida segundo leis económicas "naturais" que auto-regulam toda a actividade social. Assim, uma vez mais, o ser humano concreto fica submergido e objectivizado.

Mencionámos as concepções que para explicar o Homem começam de generalidades teóricas e sustentam a existência de uma natureza humana e de uma consciência passiva. Em sentido oposto, nós sustentamos a necessidade de arranque a partir da particularidade humana; sustentamos o fenómeno histórico-social e não natural do ser humano e também afirmamos a actividade da sua consciência transformadora do mundo de acordo com a sua intenção. Vimos a sua vida em situação e o seu corpo como objecto natural percebido imediatamente e submetido, também imediatamente, a numerosos ditames da sua intenção. Por conseguinte, impõem-se as seguintes perguntas: como é que a consciência é activa, quer dizer, como é que pode intencionar sobre o corpo e através dele transformar o mundo? Em segundo lugar, como é que a constituição humana é histórico-social? Estas perguntas devem ser respondidas a partir da existência particular, para não recair em generalidades teóricas a partir das quais se desprende depois um sistema de interpretação. Desta maneira, para responder à primeira pergunta, ter-se-á que apreender com evidência imediata como é que a intenção actua sobre o corpo e, para responder à segunda, haverá que partir da evidência da temporalidade e da intersubjectividade no ser humano e não de leis gerais da História e da sociedade. No nosso trabalho, Contribuições ao Pensamento, trata-se de dar resposta precisamente a essas duas perguntas. No primeiro ensaio de Contribuições, estuda-se a função que cumpre a imagem na consciência, destacando a sua aptidão para mover o corpo no espaço. No segundo ensaio do mesmo livro, estuda-se o tema da historicidade e sociabilidade. A especificidade destes temas afasta-nos em demasia da presente carta, por isso remetemos para o material citado.

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5. A superação da dor e do sofrimento como projectos vitais básicos.

Dissemos em Contribuições que o destino natural do corpo humano é o mundo e basta ver a sua conformação para verificar esta asserção. Os seus sentidos e os seus aparelhos de nutrição, locomoção, reprodução, etc., estão naturalmente conformados para estar no mundo, mas, além disso, a imagem lança através do corpo a sua carga transformadora; não o faz para copiar o mundo, para ser reflexo da situação dada, mas sim, pelo contrário, para modificar a situação previamente dada. Neste acontecer, os objectos são limitações ou ampliações das possibilidades corporais e os corpos alheios aparecem como multiplicações dessas possibilidades, já que são governados por intenções que se reconhecem similares às que manejam o próprio corpo. Por que razão necessitaria o ser humano de transformar o mundo e transformar-se a si mesmo? Pela situação de finitude e carência espacio-temporal em que se encontra e que regista como dor física e sofrimento mental. Assim, a superação da dor não é simplesmente uma resposta animal, mas sim uma configuração temporal em que prima o futuro e que se converte em impulso fundamental da vida, ainda que esta não se encontre urgida num momento dado. Por isso, à parte a resposta imediata, reflexa e natural, a resposta diferida para evitar a dor está impulsionada pelo sofrimento psicológico ante o perigo e está representada como possibilidade futura ou facto actual, em que a dor está presente noutros seres humanos. A superação da dor aparece, pois, como um projecto básico que guia a acção. Isso é o que possibilitou a comunicação entre corpos e intenções diversas, no que chamamos a "constituição social". A constituição social é tão histórica como a vida humana, é configurante da vida humana. A sua transformação é contínua, mas de um modo diferente à da natureza, porque nesta as mudanças não se dão mercê de intenções.

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6. Imagem, crença, olhar e paisagem.

Um dia qualquer, entro no meu quarto e percepciono a janela, reconheço-a, é-me conhecida. Tenho uma nova percepção dela, mas, além disso, actuam antigas percepções que convertidas em imagens estão retidas em mim. No entanto, observo que num ângulo do vidro há uma rachadela... "isso não estava aí", digo-me, ao comparar a nova percepção com o que retenho de percepções anteriores; além disso, experimento uma espécie de surpresa. A janela de actos anteriores ficou retida em mim, não passivamente como uma fotografia, mas sim actuante como são actuantes as imagens. O retido actua face ao que percepciono, ainda que a sua formação pertença ao passado. Trata-se de um passado sempre actualizado, sempre presente. Antes de entrar no meu quarto, dava por assente, dava como suposto, que a janela devia estar ali em perfeitas condições; não é que o estivesse a pensar, simplesmente que contava com isso. A janela em particular não estava presente nos meus pensamentos desse momento, mas estava co-presente, estava dentro do horizonte de objectos contidos no meu quarto. É graças à co-presença, à retenção actualizada e sobreposta à percepção, que a consciência infere mais do que percepciona. Nesse fenómeno, encontramos o funcionamento mais elementar da crença. No exemplo, é como se me dissesse: "eu cria que a janela estava em perfeitas condições". Se, ao entrar no meu quarto, aparecessem fenómenos próprios de um campo diferente de objectos, por exemplo, uma lancha ou um camelo, tal situação surrealista seria para mim incrível, não porque esses objectos não existam, mas sim porque a sua colocação estaria fora do campo de co-presença, fora da paisagem em que me formei e que actua em mim sobrepondo-se a todas as coisas que percepciono.

Ora bem, em qualquer instante presente da minha consciência, posso observar o entrecruzamento de retenções e de futurizações que actuam co-presentemente e em estrutura. O instante presente constitui-se na minha consciência como um campo temporal activo de três tempos diferentes. As coisas aqui são muito diferentes das que acontecem no tempo de calendário, em que o dia de hoje não está tocado pelo de ontem nem pelo de amanhã. No calendário e no relógio, o "agora" diferencia-se do "já não" e do "ainda não" e, além disso, os acontecimentos estão ordenados um ao lado do outro, em sucessão linear, e não posso pretender que isso seja uma estrutura, mas sim um agrupamento dentro de uma série total à que chamo "calendário". Mas já voltaremos a isto quando considerarmos o tema da historicidade e temporalidade.

Por ora, continuemos com o atrás dito referente a que a consciência infere mais do que percepciona, já que conta com aquilo que vindo do passado, como retenção, se sobrepõe à percepção actual. Em cada olhar que lanço a um objecto, vejo nele coisas deformadas. Isto não estamos a afirmá-lo no sentido explicado pela física moderna, que claramente expõe a nossa incapacidade para detectar o átomo e o comprimento de onda que está por cima e por baixo dos nossos limiares de percepção; isto estamos a dizê-lo com referência à sobreposição que as imagens das retenções e futurizações fazem da percepção. Assim, quando assisto no campo a um belo entardecer, a paisagem natural que observo não está determinada em si, mas antes determino-a eu, constituo-a por um ideal estético a que adiro. E essa especial paz que experimento, entrega-me a ilusão de que contemplo passivamente, quando, na realidade, estou a pôr activamente numerosos conteúdos que se sobrepõem ao simples objecto natural. E isto não é sómente válido para este exemplo, mas sim para todo o olhar que lanço à realidade.

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7. As gerações e os momentos históricos.

A organização social continua-se e amplia-se, mas isto não pode acontecer sómente pela presença de objectos sociais que foram produzidos no passado e que se utilizam para viver o presente e projectar-se para o futuro. Tal mecânica é demasiado elementar para poder explicar o processo da civilização. A continuidade está dada pelas gerações humanas que não estão postas uma ao lado da outra, mas antes, coexistindo, interactuam e transformam-se. Estas gerações, que permitem continuidade e desenvolvimento, são estruturas dinâmicas, são o tempo social em movimento, sem o qual a civilização cairia no estado natural e perderia a sua condição de sociedade. Acontece, por outro lado, que em qualquer momento histórico coexistem gerações de distinto nível temporal, de distintas retenção e futurização, que configuram paisagens de situação e crenças diferentes. O corpo e o comportamento de crianças e anciãos delata, para as gerações activas, uma presença de onde se vem e para onde se vai. Por sua vez, para os extremos dessa tripla relação, também se verificam ubicações de temporalidade extremas. Mas isto não permanece jamais parado, porque, enquanto as gerações activas envelhecem e os anciãos morrem, as crianças vão-se transformando e começam a ocupar posições activas. Entretanto, novos nascimentos reconstituem continuamente a sociedade. Quando, por abstracção, se "detém" o incessante fluir, podemos falar de "momento histórico", no qual todos os membros situados no mesmo cenário social podem ser considerados "contemporâneos", viventes de um mesmo tempo; mas observamos que não são coetâneos, que não têm a mesma idade, a mesma temporalidade interna quanto a paisagens de formação, quanto a situação actual e quanto a projecto. Na realidade, uma dialéctica geracional estabelece-se entre as "franjas" mais contíguas, que tratam de ocupar a actividade central, o presente social, de acordo com os seus interesses e crenças. É a temporalidade social interna que explica estruturalmente o devir histórico, em que interactuam distintas acumulações geracionais e não a sucessão de fenómenos linearmente postos um ao lado do outro, como no tempo de calendário, segundo nos tem explicado alguma ou outra Filosofia da História.

Constituído socialmente num mundo histórico no qual vou configurando a minha paisagem, interpreto aquilo a que lanço o meu olhar. Está a minha paisagem pessoal, mas também uma paisagem colectiva que responde, nesse momento, a grandes conjuntos. Como dissemos antes, coexistem, num mesmo tempo presente, distintas gerações. Num momento, para exemplificar a grosso modo, existem aqueles que nasceram antes do transístor e os que o fizeram entre computadores. Numerosas configurações diferem em ambas as experiências, não só no modo de actuar como também no de pensar e sentir... e aquilo que na relação social e no modo de produção funcionava numa época, deixa de fazê-lo lentamente ou, às vezes, de modo abrupto. Esperava-se um resultado no futuro e esse futuro chegou, mas as coisas não saíram do modo que tinham sido projectadas. Nem aquela acção, nem aquela sensibilidade, nem aquela ideologia coincidem com a nova paisagem que se vai impondo socialmente.

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8. A violência, o Estado e a concentração de poder.

O ser humano, pela sua abertura e liberdade para escolher entre situações, diferir respostas e imaginar o seu futuro, pode também negar-se a si mesmo, negar aspectos do corpo, negá-lo completamente como no suicídio ou negar outros. Esta liberdade permitiu que alguns se apropriem ilegitimamente do todo social, quer dizer, que neguem a liberdade e a intencionalidade de outros, reduzindo-os a próteses, a instrumentos das suas intenções. Aí está a essência da discriminação, sendo a sua metodologia a violência física, económica, racial e religiosa. A violência pode instaurar-se e perpetuar-se graças ao manejo do aparelho de regulação e controlo social, isto é: o Estado. Em consequência, a organização social requer um tipo avançado de coordenação a salvo de toda a concentração de poder, seja esta privada ou estatal. Quando se pretende que a privatização de todas as áreas económicas põe a sociedade a salvo do poder estatal, oculta-se que o verdadeiro problema está no monopólio ou oligopólio que transfere o poder das mãos estatais para as mãos de um Paraestado, manejado, já não por uma minoria burocrática, mas sim pela minoria particular que aumenta o processo de concentração.

As diversas estruturas sociais, desde as mais primitivas às mais sofisticadas, tendem à concentração progressiva até que se imobilizam e começa a sua etapa de dissolução, da qual arrancam novos processos de reorganização num nível mais alto do que o anterior. Desde o começo da História, a sociedade aponta à mundialização e assim se chegará a uma época de máxima concentração de poder arbitrário, com características de império mundial, já sem possibilidades de maior expansão. O colapso do sistema global acontecerá pela lógica da dinâmica estrutural de qualquer sistema fechado, em que necessáriamente tende a aumentar a desordem. Mas, assim como o processo das estruturas tende à mundialização, o processo de humanização tende à abertura do ser humano, à superação do Estado e do Paraestado; tende à descentralização e à desconcentração a favor de uma coordenação superior entre particularidades sociais autónomas. Que tudo acabe num caos e num reinício da civilização ou comece uma etapa de humanização progressiva já não dependerá de inexoráveis desígnios mecânicos, mas sim da intenção dos indivíduos e dos povos, do seu compromisso com a mudança do mundo e de uma ética da liberdade que, por definição, não poderá ser imposta. E haver-se-á de aspirar já não a uma Democracia formal, manejada como até agora pelos interesses das facções, mas sim a uma Democracia real, na qual a participação directa possa realizar-se instantâneamente, graças à tecnologia de comunicação, hoje em dia em condições de fazê-lo.

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9. O processo humano.

Necessariamente, aqueles que reduziram a humanidade de outros, provocaram com isso nova dor e sofrimento, reiniciando-se no seio da sociedade a antiga luta contra a adversidade natural, mas agora entre aqueles que querem "naturalizar" outros, a sociedade e a História e, por outro lado, os oprimidos que necessitam humanizar-se, humanizando o mundo. Por isso, humanizar é sair da objectivação para afirmar a intencionalidade de todo o ser humano e a primazia do futuro sobre a situação actual. É a imagem e representação de um futuro possível e melhor, o que permite a modificação do presente e o que possibilita qualquer revolução e qualquer mudança. Por conseguinte, não basta a pressão de condições opressivas para que se desencadeie a mudança, antes pelo contrário, é necessário dar-se conta que a mudança é possível e que depende da acção humana. Esta luta não é entre forças mecânicas, não é um reflexo natural; é uma luta entre intenções humanas. E é isto precisamente o que nos permite falar de opressores e oprimidos, de justos e injustos, de heróis e cobardes. É o único que permite praticar com sentido a solidariedade social e o compromisso com a libertação dos discriminados, sejam estes maiorias ou minorias.

Enfim, considerações mais detalhadas em torno da violência, do Estado, das instituições, da lei e da religião, aparecem no trabalho intitulado A Paisagem Humana, incluído no livro Humanizar a Terra, para o qual remeto para não exceder os limites desta carta.

Quanto ao sentido dos actos humanos, não creio que se trate de convulsões sem significado nem de "paixões inúteis" que concluam no absurdo da dissolução. Creio que o destino da humanidade está orientado pela intenção que, tornando-se cada vez mais consciente nos povos, abre passagem em direcção a uma nação humana universal. Do atrás comentado, surge com evidência que a existência humana não começa nem acaba num círculo vicioso de encerramento e que uma vida que aspire à coerência deve abrir-se, ampliando a sua influência a pessoas e âmbitos, promovendo, não só uma concepção ou umas ideias, mas também acções precisas que ampliem crescentemente a liberdade.

Na próxima carta, sairemos destes temas estritamente doutrinais para nos referirmos novamente à situação actual e à acção pessoal no mundo social.

Recebam com esta carta os meus melhores cumprimentos.

Silo
19/12/91


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