[ Cartas aos meus Amigos ]

[ Qualquer sugestão é bem vinda ]

  Segunda carta aos meus amigos
  1. Algumas posturas face ao processo de mudança actual.
  2. O individualismo, a fragmentação social e a concentração de poder nas minorias.
  3. Características da crise.
  4. Os factores positivos da mudança.

Estimados amigos:

Em carta anterior, referi-me à situação que nos cabe viver e a certas tendências que os acontecimentos mostram. Aproveitei para discutir algumas propostas que os defensores da economia de mercado anunciam como se se tratassem de condições ineludíveis para todo o progresso social. Também destaquei a crescente deterioração da solidariedade e a crise de referências que se verifica neste momento. Por último, esbocei algumas características positivas que se começam a observar naquilo que chamei "uma nova sensibilidade, uma nova atitude moral e uma nova disposição táctica perante a vida".

Alguns dos meus correspondentes fizeram-me notar o seu desacordo com o tom da carta, já que, segundo lhes pareceu, havia nela muitas coisas demasiado graves para uma pessoa se permitir ironizar. Mas não dramatizemos! É tão inconsistente o sistema de provas que apresenta a ideologia do neoliberalismo, da economia social de mercado e da Nova Ordem Mundial, que a coisa não é de modo a franzir o sobrolho. O que quero dizer é que tal ideologia está morta nos seus fundamentos desde há muito tempo e que em breve sobrevirá a crise prática, de superfície, que é a que finalmente percebem aqueles que confundem significado com expressão; conteúdo com forma; processo com conjuntura. Tal como as ideologias do fascismo e do socialismo real tinham morrido muito tempo antes de se ter produzido o seu descalabro prático posterior, também o desastre do actual sistema só mais adiante surpreenderá os bem-pensantes. Não é isto muito ridículo? É como ver muitas vezes um filme muito mau. Depois de tanta repetição, dedicamo-nos a esquadrinhar nas paredes de alvenaria, nas maquilhagens dos actores e nos efeitos especiais, enquanto, ao nosso lado, uma senhora se emociona por aquilo que vê e que, para ela, é a própria realidade. Assim, digo em meu descargo que não zombei da enorme tragédia que a imposição deste sistema significa, mas sim das suas monstruosas pretensões e do seu grotesco final, final que já presenciámos em muitos casos anteriores.

Também recebi correspondência a reclamar maior precisão na definição de atitudes que se deveria assumir perante o processo de mudança actual. Sobre isto, creio que será melhor tratar de entender as posições que tomam distintos grupos e pessoas isoladas, antes de fazer recomendações de qualquer tipo. Limitar-me-ei, pois, a apresentar as posturas mais populares, dando a minha opinião nos casos que me pareçam de maior interesse.

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1. Algumas posturas face ao processo de mudança actual

No lento progresso da humanidade foram-se acumulando factores até ao momento actual, em que a velocidade de mudança tecnológica e económica não coincide com a velocidade de mudança nas estruturas sociais e no comportamento humano. Este desfasamento tende a incrementar-se e a gerar crises pogressivas. Esse problema é encarado de diferentes pontos de vista. Há quem suponha que o desajuste se regulará automaticamente e, portanto, recomenda que não se trate de orientar esse processo, que, além do mais, seria impossível de dirigir. Trata-se de uma tese mecanicista optimista. Há outros que supõem que se caminha para um ponto de explosão irremediável. É o caso dos mecanicistas pessimistas. Também aparecem as correntes morais que pretendem deter a mudança e, dentro do possível, voltar a supostas fontes reconfortantes. Elas representam uma atitude anti-histórica. Mas também os cínicos, os estóicos e os epicuristas contemporâneos começam a elevar as suas vozes. Uns, negando importância e sentido a toda a acção; outros, enfrentando os factos com firmeza ainda que tudo saia mal. Finalmente, os terceiros, tratando de tirar partido da situação e pensando simplesmente no seu hipotético bem-estar, que estendem, quando muito, aos seus filhos. Como nas épocas finais de civilizações passadas, muita gente assume atitudes de salvação individual, supondo que não tem sentido nem possibilidade de êxito qualquer tarefa que se empreenda em conjunto. Em todo o caso, o conjunto tem utilidade para a especulação estritamente pessoal e, por isso, os líderes empresariais, culturais ou políticos necessitam de manipular e melhorar a sua imagem tornando-se credíveis, fazendo outros crer que eles pensam e actuam em função dos demais. Claro que tal ocupação tem os seus dissabores, porque toda a gente conhece o truque e ninguém acredita em ninguém. Os antigos valores religiosos, patrióticos, culturais, políticos e gremiais ficam submetidos ao dinheiro, num campo em que a solidariedade e, portanto, a oposição colectiva a esse esquema são varridas, ao mesmo tempo que o tecido social se descompõe gradualmente. Depois, sobrevirá outra etapa na qual o individualismo radical será superado... mas esse é um tema para mais adiante. Com a nossa paisagem de formação às costas e com as nossas crenças em crise, não estamos ainda em condições de admitir que se aproxima esse novo momento histórico. Hoje, detendo uma pequena parcela de poder ou dependendo absolutamente do poder de outros, todos nos encontramos tocados pelo individualismo, no qual tem claramente vantagem quem melhor está instalado no sistema.

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2. O individualismo, a fragmentação social e a concentração de poder nas minorias

Porém, o individualismo leva necessariamente à luta pela supremacia do mais forte e à procura do êxito a qualquer preço. Tal postura começou com uns poucos que respeitaram certas regras de jogo entre si face à obediência dos muitos. De qualquer maneira, essa etapa esgotar-se-á num "todos contra todos" porque mais tarde ou mais cedo desequilibrar-se-á o poder a favor do mais forte e o resto, apoiando-se entre si ou noutras facções, terminará por desarticular um sistema tão frágil. Mas as minorias foram mudando com o desenvolvimento económico e tecnológico, aperfeiçoando os seus métodos a tal ponto que, nalguns lugares em situação de abundância, as grandes maiorias transferem o seu descontentamento para aspectos secundários da situação em que têm de viver. E insinua-se que, mesmo crescendo o nível de vida global, as massas postergadas contentar-se-ão esperando uma melhor situação no futuro, porque já não parece que venham a questionar o sistema, mas sim certos aspectos de urgência. Tudo isso mostra uma viragem importante no comportamento social. Se isto é assim, a militância pela mudança ver-se-á progressivamente afectada e as antigas forças políticas e sociais ficarão vazias de propostas; propagar-se-á a fragmentação grupal e interpessoal e o isolamento individual será medianamente suprido pelas estruturas produtoras de bens e lazer colectivo concentradas sob uma mesma direcção. Nesse mundo paradoxal, terminar-se-á de erradicar toda a centralização e burocratismo, rompendo-se as anteriores estruturas de direcção e decisão, mas a mencionada desregulação, descentralização, liberalização de mercados e actividades será o campo mais adequado para que floresça uma concentração como não houve em nenhuma época anterior, porque a absorção do capital financeiro internacional continuará a crescer nas mãos de uma banca cada vez mais poderosa. Similar paradoxo sofrerá a classe política, ao ter que proclamar os novos valores que fazem o Estado perder poder, com o que o seu protagonismo se verá cada vez mais comprometido. Por alguma razão se vão substituindo desde há algum tempo palavras como "governo" por outras como "administração", fazendo os "públicos" (não os "povos") compreender que um país é uma empresa.

Por outro lado, e até que se consolide um poder imperial mundial, poderão ocorrer conflitos regionais como noutro tempo aconteceu entre países. Que tais confrontações se produzam no campo económico ou se trasladem à arena da guerra em áreas restritas; que como consequência aconteçam desordens incoerentes e massivas; que caiam governos completos e acabem por se desintegrar países e zonas, isso em nada afectará o processo de concentração a que parece apontar este momento histórico. Localismos, lutas interétnicas, migrações e crises continuadas não alterarão o quadro geral de concentração de poder. E quando a recessão e o desemprego afectem também as populações dos países ricos, já terá passado a etapa de liquidação liberal e começarão as políticas de controlo, coacção e emergência ao melhor estilo imperial... quem poderá então falar de economia de livre mercado e que importância terá manter posturas baseadas no individualismo radical?

Mas devo responder a outras inquietudes que se me fizeram chegar relativamente à caracterização da crise actual e das suas tendências.

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3. Características da crise

Comentaremos a crise do Estado nacional, a crise de regionalização e mundialização, e a crise da sociedade, do grupo e do individuo.

No contexto de um processo de mundialização crescente acelera-se a informação e aumenta a deslocação de pessoas e bens. A tecnologia e o poder económico em aumento concentram-se em empresas cada vez mais importantes. O mesmo fenómeno de aceleração no intercâmbio choca com as limitações e a lentidão que impõem antigas estruturas como o Estado nacional. O resultado é que se tendem a apagar as fronteiras nacionais dentro de cada região. Isto leva a que se deva homogeneizar a legislação dos países, não só em matéria de taxas aduaneiras e documentação pessoal como também naquilo que tem a ver com a adaptação dos seus sistemas produtivos. O regime laboral e de segurança social seguem na mesma direcção. Contínuos acordos entre esses países mostram que um Parlamento, um sistema judicial e um executivo comum, darão maior eficácia e velocidade à gestão dessa região. A primitiva moeda nacional vai cedendo lugar a um tipo de signo de intercâmbio regional que evita perdas e demoras em cada operação de conversão. A crise do Estado nacional é um facto observável não só naqueles países que tendem a incluir-se num mercado regional, mas também noutros cujas maltratadas economias mostram uma estagnação relativa importante. Por todos os lados, levantam-se vozes contra as burocracias anquilosadas e pede-se a reforma desses esquemas. Em pontos onde um país se configurou como resultado recente de partições e anexações, ou como federação artificial, avivam-se antigos rancores e diferenças localistas, étnicas e religiosas. O Estado tradicional tem que enfrentar essa situação centrífuga por entre crescentes dificuldades económicas que questionam precisamente a sua eficácia e legitimidade. Fenómenos desse tipo tendem a crescer no centro da Europa, no Leste e nos Balcãs. Estas dificuldades também se agudizam no Médio Oriente, Levante e Asia Menor. Na Africa, em vários países delimitados artificialmente, começam a ser observados os mesmos sintomas. Acompanhando essa descomposição, começam as migrações de povos em direcção às fronteiras, pondo em perigo o equilíbrio zonal. Bastará que aconteça um desequilíbrio importante na China para que mais de uma região seja afectada directamente pelo fenómeno, considerando, além disso a instabilidade actual da antiga União Soviética e dos países asiáticos continentais.

Entretanto, configuraram-se centros económica e tecnológicamente poderosos que assumem carácter regional: o Extremo Oriente liderado pelo Japão, Europa e Estados Unidos. A descolagem e a influência dessas zonas mostra um aparente policentrismo, mas o desenrolar dos acontecimentos assinala que os Estados Unidos somam ao seu poder tecnológico, económico e político a sua força militar, em condições de controlar as mais importantes áreas de abastecimento. No processo de mundialização crescente, tende a levantar-se esta superpotência como regedora do processo actual, em acordo ou desacordo com os poderes regionais. Este é, no fundo, o significado da Nova Ordem Mundial. Ao que parece, não chegou ainda a época da paz, ainda que se tenha dissipado, de momento, a ameaça de guerra mundial. Explosões localistas, étnicas e religiosas; desordens sociais; migrações e conflitos bélicos em áreas restritas, parecem ameaçar a suposta estabilidade actual. Por outro lado, as áreas postergadas afastam-se cada vez mais do crescimento das zonas tecnológica e economicamente aceleradas e este desfasamento relativo agrega ao esquema dificuldades adicionais. O caso da América Latina é exemplar neste aspecto, porque ainda que a economia de vários dos seus países experimente um crescimento importante nos próximos anos, a dependência relativamente aos centros de poder tornar-se-á cada vez mais notória.

Enquanto cresce o poder regional e mundial das companhias multinacionais, enquanto se concentra o capital financeiro internacional, os sistemas políticos perdem autonomia e a legislação adequa-se aos ditames dos novos poderes. Numerosas instituições podem hoje ser supridas, directa ou indirectamente, pelos departamentos ou as fundações da Empresa, que está em condições em alguns pontos de prestar assistência ao nascimento, qualificação, colocação laboral, casamento, lazer, informação, segurança social, reforma e morte dos seus empregados e seus filhos. O cidadão já pode, em certos lugares, tornear aqueles velhos trâmites burocráticos, tendendo a utilizar um cartão de crédito e, pouco a pouco, uma moeda electrónica onde constarão, não só os seus gastos e depósitos, mas também todo o tipo de antecedentes significativos e situação actual devidamente computada. Claro que tudo isto já liberta uns poucos de lentidões e preocupações secundárias, mas estas vantagens pessoais servirão também um sistema de controlo embuçado. Ao lado do crescimento tecnológico e da aceleração do ritmo de vida, a participação política diminui; o poder de decisão torna-se remoto e cada vez mais intermediado; a família reduz-se e fragmenta-se em casais cada vez mais móveis e em constante mudança; a comunicação interpessoal bloqueia-se; a amizade desaparece e a concorrência envenena todas as relações humanas ao ponto de, desconfiando todos de todos, a sensação de insegurança já não se basear no facto objectivo do aumento da criminalidade, mas sim sobretudo num estado de ânimo. Deve acrescentar-se que a solidariedade social, grupal e interpessoal desaparece velozmente; que a toxicodependência e o alcoolismo fazem estragos; que o suicídio e a doença mental tendem a incrementar-se perigosamente. Claro que em todos os lados existe uma maioria saudável e razoável, mas os sintomas de tanto desajuste já não nos permitem falar de uma sociedade sã. A paisagem de formação das novas gerações conta com todos os elementos de crise que citámos acima e não fazem só parte da sua vida a sua qualificação técnica e laboral, as telenovelas, as recomendações dos opinadores dos meios massivos, as declamações sobre a perfeição do mundo em que vivemos ou, para a juventude mais favorecida, o lazer da mota, as viagens, a roupa, o desporto, a música e os artefactos electrónicos. Este problema da paisagem de formação nas novas gerações ameaça abrir enormes brechas entre grupos de distintas idades, pondo sobre a mesa uma dialéctica geracional virulenta de grande profundidade e de enorme extensão geográfica. Está claro que se instalou na cúpula da escala de valores o mito do dinheiro e a ele, crescentemente, subordina-se tudo. Um contingente importante da sociedade não quer ouvir nada daquilo que lhe recorde o envelhecimento e a morte, desqualificando qualquer tema que se relacione com o sentido e significado da vida. E nisto devemos reconhecer uma certa razoabilidade, porquanto a reflexão sobre esses pontos não coincide com a escala de valores estabelecida no sistema. São demasiado graves os sintomas da crise para não os ver e, no entanto, uns dirão que é o preço a pagar para existir no final do século XX. Outros afirmarão que estamos a entrar no melhor dos mundos. O pano de fundo que opera nessas afirmações está posto pelo momento histórico, no qual o esquema global de situação não entrou ainda em crise ainda que as crises particulares se propaguem por todo o lado, mas à medida que os sintomas da descomposição se acelerem mudará de igual modo a apreciação dos acontecimentos, porque se sentirá a necessidade de estabelecer novas prioridades e novos projectos de vida.

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4. Os factores positivos da mudança

O desenvolvimento científico e tecnológico não pode ser posto em causa pelo facto de alguns avanços terem sido ou serem utilizados contra a vida e o bem-estar. Nos casos em que se questiona a tecnologia dever-se-ia fazer uma prévia reflexão com respeito às características do sistema que utiliza o avanço do saber com fins espúrios. Claro que o progresso na medicina, comunicações, robótica, engenharia genética e tantos outros campos, pode ser aproveitado em direcção destrutiva. O mesmo se pode dizer relativamente à utilização da técnica na exploração irracional de recursos, poluição industrial, contaminação e degradação ambiental. Mas tudo isso denuncia o signo negativo que comanda a economia e os sistemas sociais. Assim, bem sabemos que hoje se está em condições de solucionar os problemas de alimentação de toda a humanidade e, contudo, comprovamos diariamente que existe fome, desnutrição e padecimentos infra-humanos, porque o sistema não está na disposição de se dedicar a esses problemas, resignando aos seus fabulosos ganhos em troca de uma melhoria global do nível humano. Também notamos que as tendências para as regionalizações e, finalmente, para a mundialização estão a ser manipuladas por interesses particulares em detrimento dos grandes conjuntos. Mas está claro que, mesmo nessa distorsão, o processo em direcção a uma nação humana universal abre passagem. A mudança acelerada que se está a apresentar no mundo leva a uma crise global do sistema e a um consequente reordenamento de factores. Tudo isso será a condição necessária para conseguir uma estabilidade aceitável e um desenvolvimento harmónico do planeta. Por conseguinte, apesar das tragédias que se podem avistar na descomposição deste sistema global actual, a espécie humana prevalecerá sobre todo o interesse particular. Na compreensão da direcção da História, que começou nos nossos antepassados hominídios, radica a nossa fé no futuro. Esta espécie que trabalhou e lutou durante milhões de anos para vencer a dor e o sofrimento não sucumbirá no absurdo. Por isso, é necessário compreender processos mais amplos do que simples conjunturas e apoiar tudo o que vá em direcção evolutiva, ainda que não se vejam os seus resultados imediatos. O desalento dos seres humanos valorosos e solidários atrasa o passo da História. Mas é difícil compreender esse sentido se a vida pessoal não se organiza e orienta também em direcção positiva. Aqui não estão em jogo factores mecânicos ou determinismos históricos, está em jogo a intenção humana que tende a abrir caminho diante de todas as dificuldades.

Espero, meus amigos, passar a temas mais reconfortantes na próxima carta, deixando de lado a observação de factores negativos para esboçar propostas concordantes com a nossa fé num futuro melhor para todos.

Recebam com esta carta os meus melhores cumprimentos.

Silo
05/12/91


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