[ Cartas aos meus Amigos ]

[ Qualquer sugestão é bem vinda ]

  Décima carta aos meus amigos
  1. A desestruturação e os seus limites
  2. Alguns campos importantes no fenómeno da desestruturação
  3. A acção pontual

Estimados amigos:

Qual é o destino dos acontecimentos actuais? Os optimistas pensam que entraremos numa sociedade mundial de abundância, na qual os problemas sociais ficarão resolvidos; uma espécie de paraíso na Terra. Os pessimistas consideram que os sintomas actuais mostram uma doença crescente das instituições, dos grupos humanos e até do sistema demográfico e ecológico global; uma espécie de inferno na Terra. Os que relativizam a mecânica histórica deixam tudo reservado ao comportamento que assumamos no momento actual. O céu ou o inferno dependerão da nossa acção. Evidentemente, há aqueles a quem não lhes interessa minimamente o que venha a acontecer a outros que não eles mesmos.

Entre tantas opiniões, importa-nos aquela que faz depender o futuro daquilo que façamos hoje. Contudo, mesmo nesta posição, há diferenças de critério. Alguns dizem que como esta crise foi provocada pela voracidade da Banca e das empresas multinacionais, ao chegar a um ponto perigoso para os seus interesses, estas porão em marcha mecanismos de recuperação, tal como sucedeu em ocasiões anteriores. Em matéria de acção, propiciam a adaptação gradual aos processos de reconversão do capitalismo em benefício das maiorias. Outros, pelo contrário, indicam que não se trata de fazer depender toda a situação do voluntarismo das minorias, portanto trata-se de manifestar a vontade das maiorias mediante a acção política e o esclarecimento do povo que se encontra extorquido pelo esquema dominante. Segundo eles, chegará um momento de crise geral do sistema e essa situação deve ser aproveitada para a causa da revolução. Mais além, estão aqueles que sustentam que tanto o capital como o trabalho, as culturas, os países, as formas organizativas, as expressões artísticas e religiosas, os grupos humanos e até os indivíduos estão enredados num processo de aceleração tecnológica e de desestruturação que não controlam. Trata-se de um longo processo histórico que hoje vive uma crise mundial e que afecta todos os esquemas políticos e económicos, não dependendo destes a desorganização geral nem a recuperação geral. Os defensores dessa visão estrutural insistem que é necessário forjar uma compreensão global destes fenómenos, ao mesmo tempo que se actua nos campos mínimos de especificidade social, grupal e pessoal. Dada a inter-conexão do mundo, não sustentam um gradualismo com êxito que seria adoptado socialmente ao longo do tempo, antes tratam de gerar uma série de "efeitos demonstração" suficientemente enérgicos para produzir uma inflexão geral do processo. Consequentemente, exaltam a capacidade construtiva do ser humano para se dedicar a transformar as relações económicas, modificar as instituições e lutar sem descanso para desarmar todos os factores que estão a provocar uma involução sem retorno. Nós aderimos a esta última postura. Está claro que tanto esta como as anteriores foram simplificadas e, além disso, eludiu-se múltiplas variantes que derivam de cada uma delas.

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1. A desestruturação e os seus limites

Torna-se pertinente destacar os limites da desestruturação política, considerando que esta não se deterá até chegar à base social e ao indivíduo. Exemplifiquemos. nalguns países torna-se mais evidente que noutros a perda do poder político centralizado. Graças ao fortalecimento das autonomias ou à pressão das correntes secessionistas, ocorre que determinados grupos de interesses, ou simples oportunistas, desejariam parar o processo justamente no ponto em que o controlo da nova situação ficasse nas suas mãos. De acordo com essas aspirações, o cantão secessionado ou a nova república separada do país anterior, ou a região autónoma libertada do poder central, deveriam permanecer como as novas estruturas organizativas. Mas acontece que estes poderes começam a ser questionados pelas micro-regiões, pelos municípios ou comunas, pelos condados, etc.. Ninguém vê por que razão uma região autónoma libertada do poder central deveria, por sua vez, centralizar o poder relativamente a unidades menores, por mais que se desse como pretexto o uso do mesmo idioma, ou um folclore comum, ou uma imponderável "colectividade histórica e cultural", porque quando se trata de cobrança fiscal e de finanças, o folclore fica somente para o turismo e para as companhias discográficas. Caso os municípios se emancipassem do poder autonómico, as freguesias aplicariam a mesma lógica e assim haveria de continuar essa cadeia até aos vizinhos que vivem separados por uma rua. Alguém poderia dizer: "Porque é que nós que vivemos deste lado da linha, teríamos de pagar os mesmos impostos que os que vivem do outro lado? Nós temos condições de vida mais altas e os nossos impostos vão solucionar os problemas dessa outra gente que não quer progredir com o seu esforço. O melhor é que cada um se arranje com o que é seu". Desde logo, em cada casa da vizinhança poder-se-iam escutar as mesmas inquietudes e ninguém poderia parar esse processo mecânico justamente no ponto em que lhe interessasse. Quer dizer, não se travaria tudo com um simples processo de feudalização ao estilo medieval, determinado por populações reduzidas e distantes e por relações de intercâmbio esporádicas através de vias de comunicação controladas pelos feudos em luta ou por bandos cobradores de portagens. A situação não se assemelha à de outras épocas em matéria de produção, consumo, tecnologia, comunicações, densidade demográfica, etc..

Por outro lado, as regiões económicas e os mercados comuns tendem a absorver o poder decisório dos antigos países. Numa dada região, as autonomias poderiam eludir a antiga unidade nacional, mas também os municípios, ou grupos de municípios, tenderiam a "saltar" os velhos níveis administrativos e pedir a sua integração na nova superestrutura regional, reclamando a sua participação como membro pleno. Aquelas autonomias, ou municípios, ou grupos de municípios, que contassem com um forte potencial económico poderiam ser levados a sério pela unidade regional.

Não é de excluir que, na guerra económica entre os diferentes blocos regionais, alguns países membros comecem a estabelecer relações "bilaterais ou multilaterais" escapando à órbita do mercado regional em que estão incluídos. Porque é que a Inglaterra, por exemplo, não poderia estabelecer relações mais estreitas com o N.A.F.T.A. da América do Norte, conseguindo de início excepções dentro da C.E.E. e depois, de acordo com o avanço dos negócios, o que é que impediria que se incluísse no novo mercado regional abandonando o anterior? E se o Canadá entrasse num processo de secessão, o que é que impediria que o Quebec começasse negociações fora da região do N.A.F.T.A.? Já não poderiam existir na América do Sul organizações do tipo da A.L.A.L.C. ou do Pacto Andino se a Colômbia e o Chile começassem a integrar as suas economias com vista à adesão ao N.A.F.T.A., perante um MERCOSUR que se veria afectado por possíveis secessões no Brasil. Por outro lado, se a Turquia, a Argélia e outros pontos do sul do Mediterrâneo começassem a sua integração na C.E.E., os países excluídos reforçariam a sua mútua aproximação para negociar como conjunto com outras áreas geográficas. E o que é que se passaria no contexto dos blocos regionais que hoje se visualizam, com potências como a China, Rússia e o Leste europeu, dadas as suas rápidas transformações centrífugas?

Provavelmente, as coisas não virão a resultar como nos exemplos que demos, mas a tendência para a regionalização pode tomar caminhos inesperados e resultar num esquema bem diferente do que hoje se pensa com base na contiguidade geográfica e, portanto, com base no vulgar preconceito geo-político. De modo que uma nova desordem pode ocorrer dentro de esquemas recentes que têm como objectivo não só a união económica mas também uma intenção de bloco político e militar. E como, em suma, será o grande capital a decidir a melhor evolução dos seus negócios, ninguém deveria estar muito seguro imaginando mapas regionais arranjados de acordo com a contiguidade geográfica, na qual a estrada, a via férrea e o enlace radial foram os protagonistas, mas que hoje tendem a ficar redesenhados por um tráfego aéreo e marítimo de grande volume e pela comunicação mundial via satélite. Já na época do colonialismo, a continuidade geográfica foi substituída por um tabuleiro ultramarino de grandes potências, que foi declinando com os dois conflitos mundiais. A reacomodação actual, para alguns, retrotrai o problema a etapas pré-coloniais, fazendo-lhes imaginar que uma região económica deve estar organizada num continuum espacial com o qual projectam o seu nacionalismo particular para uma espécie de "nacionalismo" regional.

Em suma, estamos a dizer que os limites da desestruturação não estão determinados, no particular, pelos novos países emancipados ou pelas autonomias libertadas de um poder central, e que também não estão determinados, no geral, por regiões económicas organizadas com base na contiguidade geográfica. Os limites mínimos na desestruturação estão a chegar ao simples vizinho e ao indivíduo e os máximos à comunidade mundial.

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2. Alguns campos importantes no fenómeno da desestruturação

Gostaria de destacar, entre tantos outros possíveis, três campos de desestruturação: o político, o religioso e o geracional.

Fica claro que os partidos se alternarão ocupando o já reduzido poder estatal, ressurgindo como "direita", "centro" e "esquerda". Já acontecem e acontecerão muitas "surpresas" ao comprovar-se que as forças dadas por desaparecidas emergem novamente e que agrupamentos e alinhamentos entronizados desde há décadas atrás se dissolvem no meio do descrédito geral. Isto não é uma novidade no jogo político. O que é mesmo original é que tendências supostamente opostas poderão suceder-se sem modificar minimamente o processo desestruturador, que, desde logo, as afectará também a elas próprias. E se se trata de propostas, linguagem e estilo político, poderemos assistir a um sincretismo geral no qual os perfis ideológicos ficarão cada dia menos nítidos. Perante uma luta de slogans e formas vazias, o cidadão médio ir-se-á afastando de toda a participação para se concentrar no mais perceptual e imediato. Mas a desconformidade social far-se-á sentir crescentemente mediante o espontaneísmo, a desobediência civil, a desordem e o surgimento de fenómenos psico-sociais de crescimento explosivo. É neste ponto que aparece com perigosidade o neo-irracionalismo, o qual pode vir a liderar assumindo formas de intolerância como bandeira de luta. Neste sentido, é claro que se um poder central pretende asfixiar as reclamações independentistas, as posições tenderão a radicalizar-se arrastando as agrupações políticas à sua própria esfera. Que partido poderá ficar indiferente (com risco de perder a sua influência) se explode, num dado ponto, a violência motivada pela questão territorial, étnica, religiosa ou cultural? As correntes políticas terão de tomar posição como hoje sucede em vários lugares de África (18 pontos em conflito); América (Brasil, Canadá, Guatemala e Nicarágua, sem considerar as reivindicações das colectividades indígenas do Equador e outros países da América do Sul, e sem atender à agudização do problema racial nos E.U.A.); Asia (10 pontos, contando o conflito sino-tibetano, mas sem destacar as diferenças inter-cantonais que estão a surgir ao longo de toda a China); Asia do Sul e do Pacífico (12 pontos, incluindo as reivindicações das colectividades autóctones da Austrália); Europa Ocidental (16 pontos); Europa Oriental (4 pontos, tomando a República Checa e a Eslováquia, a ex-Jugoslávia, o Chipre e a ex-União Soviética como um só ponto cada uma, pois de outro modo as zonas em conflito podem elevar-se a 30, tendo em conta os vários países dos Balcãs e a ex-União Soviética, com dificuldades interétnicas e fronteiriças em mais de vinte repúblicas repartidas para além da Europa Oriental); Oriente e Médio Oriente (9 pontos).

Os políticos também terão de fazer eco da radicalização que as religiões tradicionais vão experimentando, como ocorre entre muçulmanos e hindus na India e Paquistão, entre muçulmanos e cristãos na ex-Jugoslávia e Líbano, entre hindus e budistas no Sri Lanka. Deverão tomar posição nas lutas inter-seitas dentro de uma mesma religião, como se passa na zona de influência do Islão entre sunitas e xiitas, e na zona de influência do cristianismo entre católicos e protestantes. Terão de participar na perseguição religiosa que começou no Ocidente através da Imprensa e da instauração de leis limitadoras da liberdade de culto e de consciência. É evidente que as religiões tradicionais tenderão a acossar as novas formas religiosas que estão a despertar em todo o mundo. Segundo os bem-pensantes, normalmente ateus mas objectivamente aliados da seita dominante, a fustigação aos novos grupos religiosos "não constitui uma limitação à liberdade de pensamento, mas sim uma protecção à liberdade de consciência que se vê agredida pela lavagem ao cérebro dos novos cultos, os quais, além do mais, atentam contra os valores tradicionais, a cultura e a forma de vida da civilização". Deste modo, políticos alheios ao tema religioso começam a tomar partido nesta orgia de caça às bruxas porque, entre outras coisas, vislumbram a popularidade massiva que começam a conseguir estas novas expressões de fé de fundo revolucionarista. Já não poderão dizer, como no século XIX, " a religião é o ópio dos povos", já não poderão falar do isolamento adormecido das multidões e dos indivíduos, quando as massas muçulmanas proclamam a instauração de repúblicas islâmicas; quando o budismo no Japão (desde o colapso da religião nacional xintoísta no final da segunda guerra mundial) motoriza a tomada do poder pelo Komeitó; quando a Igreja Católica tende à formação de novas correntes políticas após o desgaste do social-cristianismo e do Terceiro Mundismo na América Latina e África. Em todo o caso, os filósofos ateus dos novos tempos terão que mudar os termos e substituir no seu discurso o "ópio dos povos" pela "anfetamina dos povos".

Os dirigentes terão que definir posições com respeito a uma juventude que toma características de "grupo de risco maioritário" porque lhe são atribuídas tendências perigosas para a droga, a violência e a incomunicação. Estes dirigentes que insistem em ignorar as raizes profundas desses problemas, não estão em condições de dar respostas adequadas por meio da participação política, do culto tradicional, ou das ofertas de uma civilização decadente manejada pelo Dinheiro. Entretanto, está-se a facilitar a destruição psíquica de toda uma geração e o surgimento de novos poderes económicos que medram vilmente com a angústia e o abandono psicológico de milhões de seres humanos. Muitos se interrogam agora a que se deve o crescimento da violência entre os jovens, como se não tivessem sido as velhas gerações e a actual, que detém o poder, as que aperfeiçoaram uma violência sistemática, aproveitando inclusivamente os avanços da ciência e da tecnologia para tornar mais eficientes as suas manipulações. Alguns destacam um certo "autismo" juvenil e, tendo em conta essa apreciação, poderia estabelecer-se relações entre o prolongamento de vida dos adultos e o maior tempo de capacitação requerido para que os jovens superem o limiar de postergação. Esta explicação tem por onde se lhe pegue, mas é insuficiente na hora de entender processos mais amplos. O observável é que a dialéctica geracional, motor da História, ficou provisoriamente obstruída e com isso abriu-se um perigoso abismo entre dois mundos. Aqui é oportuno recordar que quando algum pensador advertiu há décadas atrás sobre aquelas tendências que hoje já se expressam como problemas reais, os mandarins e os seus formadores de opinião não souberam mais do que rasgar-se as vestes acusando tal discurso de promover a guerra geracional. Naqueles tempos, uma poderosa força juvenil que deveria ter exprimido o advento de um fenómeno novo, mas também a continuação criativa do processo histórico, foi desviada para as difusas exigências da década de 60 e empurrada para um guerrilheirismo sem saída em vários pontos do mundo. Se se pretende actualmente que as novas gerações canalizem o seu desespero no tumulto musical e no estádio de futebol, limitando as suas reivindicações à camisola e ao poster de inocentes proclamações, haverá novos problemas. Tal situação de asfixia cria condições catárticas irracionais aptas para ser canalizadas pelos fascistas, os autoritários e os violentistas de todo o tipo. Não é semeando a desconfiança em relação aos jovens, nem suspeitando de cada criança como um criminoso em potência, que se estabelecerá o diálogo. Aliás, ninguém mostra entusiasmo em dar participação nos meios de comunicação social às novas gerações, ninguém está disposto à discussão pública destes problemas, a menos que se trate de "jovens exemplares" que reproduzam a temática politiqueira com música rock ou se dediquem, com espírito de escuteiros, a limpar pinguins todos sujos de petróleo sem questionar o grande capital como promotor do desastre ecológico! Receio seriamente que qualquer organização genuinamente juvenil (seja ela laboral, estudantil, artística ou religiosa) será suspeita das piores maldades não estando apadrinhada por um sindicato, um partido, uma fundação ou uma igreja. Depois de tanta manipulação, continuar-se-á a perguntar por que razão não se integram os jovens nas maravilhosas propostas que faz o poder estabelecido e continuar-se-á a responder que o estudo, o trabalho e o desporto mantêm ocupados os futuros cidadãos de proveito. Nesse caso, ninguém se deveria preocupar pela falta de "responsabilidade" de gente tão atarefada. Porém, se o desemprego continua a trepar, se a recessão se torna crónica, se o desamparo se propaga por onde quer que seja, veremos em que se transforma a não participação de hoje. Por diferentes motivos (guerras, fomes, desemprego, fadiga moral), desestruturou-se a dialéctica geracional produzindo-se aquele silêncio de duas longas décadas, aquela quietude que tende agora a ser comovida por um grito e por uma acção desesperada sem destino.

Por todo o exposto, parece claro que ninguém poderá orientar razoavelmente os processos de um mundo que se dissolve. Esta dissolução é trágica, mas também anuncia o nascimento de uma nova civilização, a civilização mundial. A ser isto assim, também se há-de estar a desintegrar um tipo de mentalidade colectiva ao mesmo tempo que emerge uma nova forma de tomar consciência do mundo. Sobre este ponto gostaria de trazer aqui o dito na primeira carta: "... está a nascer uma sensibilidade que se corresponde com os novos tempos. É uma sensibilidade que capta o mundo como uma globalidade e que se dá conta de que as dificuldades das pessoas em qualquer lugar acabam por implicar outras, ainda que se encontrem a muita distância. As comunicações, o intercâmbio de bens e a veloz deslocação de grandes contingentes humanos de um ponto para outro, mostram esse processo de mundialização crescente. Também estão a surgir novos critérios de acção ao compreender-se a globalidade de muitos problemas, percebendo-se que a tarefa daqueles que querem um mundo melhor será efectiva se se a faz crescer a partir do meio no qual se tem alguma influência. Ao contrário de outras épocas cheias de frases ocas com as quais se procurava reconhecimento externo, hoje começa-se a valorizar o trabalho humilde e sentido, mediante o qual não se pretende engrandecer a própria figura, mas sim mudar-se a si mesmo e ajudar o meio imediato familiar, laboral e de relação a fazê-lo. Os que gostam realmente das pessoas não desprezam essa tarefa sem estridências, incompreensível, ao invés, para qualquer oportunista formado na antiga paisagem dos líderes e da massa, paisagem na qual ele aprendeu a usar outros para ser catapultado para a cúpula social. Quando alguém comprova que o individualismo esquizofrénico já não tem saída e comunica abertamente a todos os seus conhecidos o que é que pensa e o que é que faz, sem o ridículo temor de não ser compreendido; quando se aproxima de outros; quando se interessa por cada um e não por uma massa anónima; quando promove o intercâmbio de ideias e a realização de trabalhos em conjunto; quando claramente expõe a necessidade de multiplicar essa tarefa de reconexão num tecido social destruído por outros; quando sente que mesmo a pessoa mais "insignificante" é de superior qualidade humana que qualquer desalmado posto no cume da conjuntura epocal...Quando sucede tudo isto, é porque no interior desse alguém começa a falar novamente o Destino que tem movido os povos na sua melhor direcção evolutiva; esse Destino tantas vezes desviado e tantas vezes esquecido, mas sempre reencontrado nas encruzilhadas da história. Não só se vislumbra uma nova sensibilidade, um novo modo de acção, como também, além disso, uma nova atitude moral e uma nova disposição táctica perante a vida".

Centenas de milhar de pessoas em todo o mundo aderem hoje às ideias plasmadas no Documento Humanista. Existem os comunista-humanistas; os social-humanistas; os ecologista-humanistas que, sem renunciar às suas bandeiras, dão um passo rumo ao futuro. Há os que lutam pela paz, pelos direitos humanos e pela não-discriminação. Desde logo, há ateus e gente com fé no ser humano e na sua transcendência. Todos estes têm em comum uma paixão pela justiça social, um ideal de irmandade humana com base na convergência da diversidade, uma disposição para saltar por sobre todo o preconceito, uma personalidade coerente em que a vida pessoal não está separada da luta por um mundo novo.

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3. A acção pontual

Ainda restam militantes políticos que se inquietam em saber quem será primeiro-ministro, presidente, senador ou deputado. É possível que não compreendam rumo a que desestruturação estamos a avançar e que pouco significam as mencionadas "hierarquias" em ordem à transformação social. Também haverá mais de um caso em que a inquietude está ligada à situação pessoal de supostos militantes preocupados pela sua posição no âmbito do negócio político. A pergunta, em todo o caso, deve estar referida a compreender como priorizar os conflitos nos lugares em que cada um desenvolve a sua vida quotidiana, e a saber como organizar frentes de acção adequadas com base nesses conflitos. Em todos os casos, deve ficar claro que características devem ter as comissões laborais e estudantis de base, os centros de comunicação directa e as redes de conselhos vicinais; o que se deve fazer para dar participação a todas as organizações mínimas em que se expresse o trabalho, a cultura, o desporto e a religiosidade popular. E aqui convém esclarecer que quando nos referimos ao meio imediato das pessoas, formado por companheiros de trabalho, parentes e amigos, devemos mencionar, em particular, os lugares em que se dão essas relações.

Falando em termos espaciais, a unidade mínima de acção é a comunidade de vizinhos, na qual se percepciona todo o conflito, mesmo que as suas raizes estejam muito distantes. Um centro de comunicação directa é um ponto vicinal no qual se há-de discutir todos os problemas económicos e sociais, todos os problemas de saúde, de educação e de qualidade de vida. A preocupação política consiste em priorizar essa vizinhança, antes do que o município, do que o condado, do que a província, do que a região ou do que o país. Na verdade, muito antes de se formarem os países, existiam as pessoas congregadas como grupos humanos que, ao se radicarem, se converteram em vizinhos. Depois, e à medida que se foram montando superestruturas administrativas, foi-se-lhes arrebatando a sua autonomia e o seu poder. Desses habitantes, desses vizinhos, deriva a legitimidade de uma dada ordem e de aí se deve erguer a representatividade de uma democracia real. O município deve estar nas mãos das unidades vicinais e, se isto é assim, não se pode planear como objectivo colocar deputados e representantes em diferentes níveis, como acontece na política cupular, já que essa colocação deve ser consequência do trabalho da base social organizada. O conceito de "unidade vicinal" tanto é válido para uma povoação extensa como para uma povoação concentrada em bairros ou edificações em altura. A conexão entre unidades vicinais deve decidir a situação de uma dada comuna e essa comuna não pode, inversamente, depender nas suas decisões de uma superestrutura que dita ordens. No momento em que as unidades vicinais ponham em marcha um plano humanista de acção municipal e esse município ou comuna organize a sua democracia real, o "efeito demonstração" far-se-á sentir muito mais além dos limites desse bastião. Não se trata de planear um gradualismo que deva ir ganhando terreno até chegar a todos os cantos de um país, mas sim de mostrar, na prática, que num dado ponto está a funcionar um novo sistema.

Os problemas de pormenor que todo o exposto apresenta são numerosos, mas o seu tratamento neste escrito parece excessivo.

Recebam com esta última carta os meus melhores cumprimentos.

Silo
15/12/93


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