[ Humanizar a Terra ]

  Humanizar a Terra - A Paisagem Humana

Notas

  1. As paisagens e os olhares.
  2. O humano e o olhar exterior.
  3. O corpo humano como objecto de intenção.
  4. Memória e paisagem humana.
  5. Distância que impõe a paisagem humana.
  6. A educação.
  7. A história.
  8. As ideologias.
  9. A violência.
  10. A Lei.
  11. O Estado.
  12. A religião.
  13. Os caminhos abertos.

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As paisagens e os olhares

1. Falemos de paisagens e olhares, retomando o que se disse em algum outro lugar: "Paisagem externa é o que percepcionamos das coisas; paisagem interna é o que filtramos delas com a peneira do nosso mundo interno. Estas paisagens são uma e constituem a nossa indissolúvel visão da realidade".

2. Já nos objectos externos percebidos, um olhar ingénuo pode fazer confundir "o que se vê" com a própria realidade. Haverá quem vá mais longe crendo que recorda a "realidade" tal como foi. E não faltará um terceiro que confunda a sua ilusão, a sua alucinação ou as imagens dos seus sonhos com objectos materiais (que na realidade foram percebidos e transformados em diferentes estados de consciência).

3. Que nas recordações e nos sonhos apareçam deformados objectos anteriormente percebidos, não parece trazer dificuldades às pessoas razoáveis. Mas que os objectos percebidos sempre estejam cobertos pelo manto multicolorido de outras percepções simultâneas e de recordações que nesse momento actuam; que percepcionar seja um modo global de estar entre as coisas, um tom emotivo e um estado geral do próprio corpo... isso, como ideia, desorganiza a simplicidade da prática diária, do fazer com as coisas e entre as coisas.

4. Acontece que o olhar ingénuo toma o mundo "externo" com a própria dor ou a própria alegria. Olho, não só com o olho, mas também com o coração, com a suave recordação, com a ominosa suspeita, com o cálculo frio, com a sigilosa comparação. Olho através de alegorias, signos e simbolos que não vejo no olhar, mas que actuam sobre ele, assim como não vejo o olho nem o actuar do olho quando olho.

5. Por isso, pela complexidade do percepcionar, quando falo de realidade externa ou interna, prefiro fazê-lo usando o vocábulo "paisagem" em vez de "objecto". E com isso dou por entendido que menciono blocos, estruturas e não a individualidade isolada e abstracta de um objecto. Também me interessa destacar que a essas paisagens correspondem actos do percepcionar aos quais chamo "olhares" (invadindo, talvez ilegítimamente, numerosos campos que não se referem à visualização). Estes "olhares" são actos complexos e activos, organizadores de "paisagens", e não simples e passivos actos de recepção de informação externa (dados que chegam aos meus sentidos externos) ou interna (sensações do próprio corpo, recordações e apercepções). Em demasia, diga-se que nestas mútuas implicações de "olhares" e "paisagens", as distinções entre o interno e o externo se estabelecem segundo direcções da intencionalidade da consciência e não como quer o esquematismo ingénuo que se apresenta aos escolares.

6. Se o anterior está entendido, quando fale de "paisagem humana", compreender-se-á que estou a mencionar um tipo de paisagem externa constituido por pessoas e também por factos e intenções humanas plasmados em objectos, mesmo que o ser humano como tal não esteja ocasionalmente presente.

7. Convém, além disso, distinguir entre mundo interno e "paisagem interna"; entre natureza e "paisagem externa"; entre sociedade e "paisagem humana", recalcando que ao mencionar "paisagem", sempre se está a implicar quem olha, à diferença dos outros casos em que mundo interno (ou psicológico), natureza e sociedade, aparecem ingenuamente como se existissem tal qual, excluídos de toda a interpretação.

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O humano e o olhar exterior

1. Nada substancial nos diz aquela afirmação segundo a qual "o Homem constitui-se num meio" e que mercê desse meio (natural para uns, social para outros e as duas coisas para alguns mais), o ser humano "constitui-se" (?). Tal inconsistência agrava-se se se destaca a relação "constitui", dando por admitida a compreensão dos termos "Homem" e "meio", já que "meio" supõe-se que é o que rodeia ou então submerge o ser humano e "Homem" é o que está dentro ou submergido nesse "meio". Continuamos, pois, como ao princípio num circulo de vacuidades. No entanto, notamos que as duas expressões relacionadas assinalam entidades separadas e que existe a intenção de unir esta separação com uma relação ardilosa, com a palavra "constitui" que tem implicações de génese, quer dizer, de explicação desde o mais original (desde a sua origem).

2. O atrás dito não seria de interesse se não se nos apresentasse como um paradigma de diferentes asserções que durante milénios têm vindo a apresentar uma imagem do ser humano visto do lado das coisas e não visto do olhar que olha as coisas. Porque dizer "o Homem é o animal social", ou dizer "o Homem foi feito à semelhança de Deus", põe a sociedade ou Deus como quem olha o Homem, quando, afinal, a sociedade e Deus só se concebem, se negam ou aceitam desde o olhar humano.

3. E assim, num mundo em que desde muito cedo se instalou um olhar inumano, instalaram-se também comportamentos e instituições que diminuiram o humano. Deste modo, na observação da natureza, entre outras coisas, perguntou-se pela natureza do Homem e respondeu-se como se responde no caso dum objecto natural.

4. Mesmo as correntes de pensamento que apresentaram o ser humano como sujeito a transformação, trabalharam pensando o humano desde o olhar exterior, desde diferentes posicionamentos do naturalismo histórico.

5. É a ideia subjacente de "natureza humana" aquela que correspondeu ao olhar exterior sobre o humano. Mas, sabendo que o Homem é o ser histórico cujo modo de acção social transforma a sua própria natureza, o conceito de "natureza humana" aparece sujeito à actividade humana, ao existir e submetido às transformações e desvelos que esse existir oriente. Deste modo, o corpo como prótese da intenção estende-se nas suas potencialidades humanizando o mundo. E esse mundo não pode ser já visto como simples exterioridade, mas sim como "paisagem" natural ou humana, submetida a transformações humanas actuais ou possíveis. É nesse fazer que o Homem se transforma a si mesmo.

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O corpo humano como objecto de intenção

1. O corpo como objecto natural é passível de modificações naturais e, desde já, susceptível de transformação, não só nas suas expressões mais externas, mas também no seu intimo funcionamento, mercê da intenção humana. Visto assim, o próprio corpo como prótese da intenção adquire a sua maior relevância. Mas, desde o governo imediato (sem intermediação) do próprio corpo até à adequação deste a outras necessidades e outros designios, medeia um processo social que não depende do indivíduo isolado, mas sim que implica outros.

2. A propriedade sobre a minha estrutura psicofísica dá-se graças à intencionalidade, enquanto os objectos externos aparecem-me como sendo alheios à minha propriedade imediata e só governáveis mediatamente (por acção do meu corpo). Mas, um tipo particular de objecto é o corpo do outro, o qual intuo como sendo propriedade de uma intenção alheia. E essa estranheza coloca-me "visto desde fora", visto desde a intenção do outro. Por isso, a visão que tenho do estranho é uma interpretação, uma "paisagem" que se estenderá a qualquer objecto que leve a marca da intenção humana, mesmo quando tenha sido produzido ou manipulado por alguém actual ou pretérito. Nessa "paisagem humana", posso diminuir a intenção de outros, considerando-os como próteses do meu próprio corpo, em cujo caso devo "esvaziar" a sua subjectividade totalmente ou, pelo menos, naquelas regiões do pensar, do sentir ou do actuar que desejo governar de modo imediato. Essa objectivação desumaniza-me necessariamente e assim, justifico a situação pela acção de uma Força maior não controlada por mim (a "Paixão", "Deus", a "Causa", a "Desigualdade natural", o "Destino", a "Sociedade", etc.

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Memória e paisagem humana

1. Diante de uma paisagem desconhecida, apelo à minha memória e noto o novo por "reconhecimento" da sua ausência em mim. Assim me acontece também com uma paisagem humana na qual a linguagem, vestes e usos sociais contrastam fortemente com aquela paisagem na que tenho formadas as minhas recordações. Mas, em sociedades em que a mudança é lenta, a minha paisagem anterior tende a impôr-se a estas novidades que percebo como sendo "irrelevantes".

2. E acontece que, vivendo em sociedades de velozes modificações, tendo a desconhecer o valor da mudança ou a considerá-la "desvio", sem entender que a perda interior que experimento é a perda da paisagem social em que se configurou a minha memória.

3. Pelo que ficou dito, compreendo que uma geração, quando acede ao poder, tende a plasmar externamente os mitos e as teorias, as apetências e os valores daquelas paisagens, hoje inexistentes, mas que ainda vivem e actuam a partir da recordação social em que se formou esse conjunto. E essa paisagem foi assimilada como paisagem humana pelos filhos e como "irrelevância" ou "desvio" pelos seus pais. E por mais que lutem entre si as gerações, a que chega ao poder converte-se de imediato em retardatária, ao impôr a sua paisagem de formação a uma paisagem humana já modificada ou que ela própria contribuiu para modificar. Deste modo, na transformação que instaura um novo conjunto está o atraso que arrasta da sua época de formação. E contra esse atraso choca um novo conjunto que se está a formar. Quando falei do "poder" a que chega uma geração, imagino que se entendeu bem; referi-me às suas diferentes expressões: políticas, sociais, culturais e assim seguindo.

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Distância que impõe a paisagem humana

1. Toda a geração tem a sua astúcia e não hesitará em apelar à mais sofisticada renovação, se com esse recurso aumenta o seu poder. No entanto, isto leva-a a inumeráveis dificuldades porquanto a transformação que pôs em movimento arrasta rumo ao futuro essa sociedade que, na dinâmica de hoje, é já contraditória com a paisagem social interna que se queria manter. Por isso digo que "cada geração tem a sua astúcia", mas também tem a sua armadilha.

2. Com que paisagem humana se está a enfrentar a nula e injustificada apetência? De imediato, com uma paisagem humana percebida diferente à paisagem recordada. Mas, além disso, com uma paisagem humana que não coincide com o tom afectivo, com o clima emotivo geral da recordação de pessoas, edifícios, ruas, ofícios, instituições. E esse "afastamento" ou "estranheza" mostra claramente que qualquer paisagem percebida é uma realidade diferente e global daquela recordada, mesmo quando se trate do quotidiano ou familiar. Assim, as apetências que, durante tanto tempo, acariciaram a posse de um objecto (coisa, pessoa, situação), acabaram defraudadas no seu cumprimento. E essa é a distância que impõe a dinâmica da paisagem humana a qualquer recordação sustentada individual ou colectivamente; sustentada por um ou por muitos, ou por toda uma geração que, coexistindo num mesmo espaço social, está nimbada por um fundo emotivo similar... Quanto mais afastado se torna o acordo relativamente a um objecto, quando é considerado por diferentes gerações ou representantes de épocas distintas que coexistem no mesmo espaço! E se parece que estamos a falar de inimigos, devo destacar que estes abismos abrem-se já entre aqules que coincidem nos seus interesses.

3. Nunca se toca do mesmo modo um mesmo objecto nem jamais se sente duas vezes uma mesma intenção. E isto que creio perceber como intenção em outros, é só uma distância que interpreto cada vez de maneira diferente. Assim, a paisagem humana, cuja nota distintiva é a intenção, põe em evidência o estranhamento, que no seu momento muitos notaram pensando que seria, talvez, produto de condições objectivas de uma sociedade não solidária que atirava para o exílio a consciência desapossada. E, ao terem equivocado aqueles a sua apreciação com respeito à essência da intenção humana, encontraram-se com que a sociedade construída por eles com esforço, se abismou geracionalmente e estranhou-se diante de si mesma, à medida que aumentou a aceleração da sua paisagem humana. Outras sociedades desenvolvidas segundo esquemas diferentes, receberam idêntico impacto, com o qual ficou demonstrado que os problemas fundamentais do ser humano deviam ser resolvidos, tendo como objectivo a intenção que transcende o objecto e da qual o objecto social é só a sua morada. E assim também, toda a natureza (incluída nela o corpo do Homem) deveu ser compreendida como lar da intenção transformadora.

4. A percepção da paisagem humana é cotejo de mim mesmo e compromisso emotivo, algo que me nega ou me lança para diante. E, desde o meu "hoje", agregando recordações, sou succionado pela intenção de futuro. Esse futuro que condiciona o hoje, essa imagem, esse sentimento confundido ou querido, esse fazer escolhido ou imposto, também marca o eu passado, porque muda o que considero que foi o meu passado.

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A educação

1. A percepção da paisagem externa e a sua acção sobre ela, compromete o corpo e um modo emotivo de estar no mundo. Desde logo, também compromete a própria visão da realidade, conforme comentei no seu momento. Por isso, creio que educar é basicamente habilitar as novas gerações no exercício de uma visão não ingénua da realidade, de maneira que o seu olhar tenha em conta o mundo, não como uma suposta realidade objectiva em si mesma, mas sim como o objecto de transformação a que aplica o ser humano a sua acção. Mas não estou a falar neste momento da informação sobre o mundo, mas sim do exercício intelectual de uma particular visão despreconceituosa sobre as paisagens e de uma atenta prática sobre o próprio olhar. Uma educação elementar deve ter em conta o exercício do pensar coerente. Neste caso, não se está a falar de conhecimento estrito, mas sim de contacto com os próprios registos do pensar.

2. Em segundo lugar, a educação deveria contar com o acicate da captação e do desenvolvimento emotivo. Por isso, o exercício da representação, por um lado, e o da expressão, por outra, assim como a perícia no manejo da harmonia e do ritmo, teriam de ser considerados no momento de planificar uma formação integral. Mas o comentado não tem por objecto a instrumentalização de procedimentos com a pretensão de "produzir" talentos artísticos, mas sim com a intenção de que os indivíduos tomem contacto contacto emotivo consigo mesmo e com outros, sem os transtornos a que induz uma educação da separatividade e da inibição.

3. Em terceiro lugar, deveria ter-se em conta uma prática que pusesse em jogo todos os recursos corporais de modo harmónico, e esta disciplina parece-se mais com uma ginástica realizada com arte que com o desporto, já que este não forma integralmente, mas sim de maneira unilateral. Porque aqui trata-se de tomar contacto com o próprio corpo e de governá-lo com soltura. Por isso, o desporto não teria que ser considerado como uma actividade formativa, mas seria importante o seu cultivo, tendo por base a disciplina comentada.

4. Até aqui falei da educação entendendo-a do ponto de vista de actividades formativas para o ser humano na sua paisagem humana, mas não falei da informação que se relaciona com o conhecimento, com a incorporação de dados através do estudo e da prática como forma de estudo.

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A história

1. Enquanto se continue a pensar o processo histórico desde um olhar externo, será inútil explicá-lo como o desdobramento crescente da intencionalidade humana na sua luta por superar a dor (física) e o sofrimento (mental). Daquele modo, alguns preocupar-se-ão em desvelar as leis intimas do acontecer humano, desde a metéria, desde o espírito, desde certa razão, mas, na verdade, o mecanismo interno que se procure, sempre estará visto de "fora" do Homem.

2. Desde logo, continuar-se-á a entender o processo histórico como o desenvolvimento de uma forma que, em suma, não será senão a forma mental de quem vê assim as coisas. E não importa a que tipo de dogma se apele, porque o fundo que dite tal adesão, sempre será aquilo que se queira ver.

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As ideologias

1. As ideologias que nalguns momentos históricos se impunham e mostravam a sua utilidade para orientar a acção e interpretar o mundo em que se desenvolviam tanto indivíduos como conjuntos humanos, foram afastadas por outras cuja maior consecução consistiu em aparecer como ssendo a própria realidade, como o mais concreto e imediato e isento de qualquer "ideologia".

2. Assim, os oportunistas de outros tempos que se caracterizaram por trair todos os compromissos, apareceram nas épocas da crise das ideologias, chamando-se a si mesmos "pragmáticos" ou "realistas", sem saber nem de longe de onde provinham tais palavras. Em todo o caso, exibiram com total impudor a sua ideologema, apresentando-a como o máximo da inteligência e da virtude.

3. Sem dúvida que, ao acelerar-se a mudança social, a não coincidência entre a paisagem humana em que se formaram umas gerações com a paisagem humana em que lhes cabia actuar, deixava-as orfãs de qualquer teoria e de qualquer modelo de conduta. Portanto, deviam dar respostas cada vez mais velozes e mais improvisadas, fazendo-se "conjunturais" e pontuais na aplicação da acção, com o qual toda a ideia de processo e toda a noção de historicidade foi declinando, crescendo, em troca, um olhar analítico e fragmentário.

4. Os cínicos pragmáticos redundaram em netos vergonhosos daqueles esforçados construtores de "consciências desditosas" e filhos daqueles que denunciaram as ideologias como sendo "emascaramentos" da realidade. Por isso, em todo o pragmatismo ficou o rasto do absolutismo de família. E assim ouviu-se-lhes dizer: "Há que ater-se à realidade e não a teorias". Mas isto trouxe-lhes inumeráveis dificuldades quando emergiram correntes irracionalistas que por sua vez afirmaram: "Há que ater-se à nossa realidade e não a teorias".

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A violência

1. Quando se fala de metodologia de acção referida à luta política e social, frequentemente alude-se ao tema da violência. Mas há questõeas prévias às que o tema mencionado não é alheio.

2. Enquanto o ser humano não realize plenamente uma sociedade humana, quer dizer, uma sociedade em que o poder esteja no todo social e não numa parte dele (submetendo e objectivando o conjunto), a violência será o signo sob o qual se realize toda a actividade social. Por isso, ao falar de violência há que mencionar o mundo instituído e, se a esse mundo se opõe uma luta não-violenta, deve destacar-se, em primeiro lugar, que uma atitude não-violenta é tal porque não tolera a violência. De maneira que não se trata de justificar um determinado tipo de luta, mas sim de definir as condições de violência que impõe esse sistema inumano.

3. Por outro lado, confundir não-violência com pacifismo, leva a inumeráveis erros. A não-violência não necessita justificação como metodologia de acção, mas o pacifismo necessita estabelecer ponderações sobre os factos que acercam ou afastam da paz, entendendo esta como um estado de não beligerância. Por isso, é que o pacifismo encara temas como os do desarmamento, fazendo disto a prioridade essencial de uma sociedade, quando, na realidade, o armamentismo é um caso de ameaça de violência física que responde ao poder instituído por uma minoria que manipula o Estado. O tema do desarmamento é de importância capital e, se bem que o pacifismo se dedique a esta urgência, ainda quando tenha êxito nas suas demandas, não modificará, por isso, o contexto da violência e, desde logo, não poderá estender-se, senão artificiosamente, ao plano da modificação da estrutura social. É claro que também existem diferentes modelos de pacifismo e diferentes bases teóricas dentro de tal corrente, mas, em todo o caso, não deriva dela um plano maior. Se, ao invés, a sua visão do mundo fosse mais ampla, certamente estaríamos em presença de uma doutrina que inclui o pacifismo. Neste caso, deveríamos discutir os fundamentos dessa doutrina, antes de aderir ou refutar o pacifismo que de ela deriva.

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A Lei

1. "O direito de cada um termina onde começa o direito dos demais", portanto "o direito dos demais termina onde começa o de cada um". Porém, como se enfatiza a primeira e não a segunda frase, tudo faz suspeitar que os que sustentam tal perspectiva, se interpretam a si mesmos como "os demais", quer dizer, como representantes de um sistema estabelecido que se dá por justificado.

2. Não faltou quem deriva a lei de uma suposta "natureza" humana, mas como isto já foi discutido anteriormente, não acrescenta nada à questão.

3. Pessoas práticas não se perderam em teorizações e declararam que é necessária uma lei para que exista a convivência social. Também se afirmou que a lei se faz para defender os interesses de quem a impõe.

4. Tanto quanto parece, é a situação prévia de poder que instala uma determinada lei, que por sua vez legaliza o poder. Assim, o poder como imposição de uma intenção, aceite ou não, é o tema central. Diz-se que a força não gera direitos, mas este contrasenso pode aceitar-se, se se concebe a força só como facto físico brutal, quando, na realidade, a força (económica, política, etc.) não necessita ser exposta perceptualmente para fazer-se presente e impôr respeito. Por outro lado, mesmo a força física (a das armas p. ex.), expressa na sua descarnada ameaça, impõe situações ou tem sob custódia (co-presentemente) situações que são justificadas legalmente. E já não devemos desconhecer que o uso das armas, numa ou noutra direcção, depende da intenção humana e não de um direito.

5. Quem viola uma lei, desconhece uma situação imposta no presente, expondo a sua temporalidade (o seu futuro) às decisões de outros. Mas é claro que aquele "presente" em que a lei começa a ter vigência, tem raizes no passado. O costume, a moral, a religião, ou o consenso social são habitualmente as fontes invocadas para justificar a existência da lei. Cada uma delas, por sua vez, depende do poder que a impôs. E estas fontes são revistas quando o poder que as originou , decaíu ou transformou-se de tal modo que a manutenção da ordem jurídica anterior, começa a chocar contra "o razoável", contra "o sentido comum", etc. Quando o legislador muda uma lei, ou então, um conjunto de representantes do povo mudam a Lei Fundamental de um país, não se viola aparentemente a lei, porque os que actuam não ficam expostos às decisões de outros, quer dizer, porque têm nas suas mãos o poder ou actuam como representantes de um poder e, nessas situações, fica claro que o poder gera direitos e obrigações e não o inverso.

6. Os Direitos Humanos não têm a vigência universal que seria desejável, porque não dependem do poder universal do ser humano, mas sim do poder de uma parte sobre o todo e, se as mais elementares reclamações sobre o governo do próprio corpo são pisadas em todas as latitudes, só podemos falar de aspirações que terão de converter-se em direitos. Os Direitos Humanos não pertencem ao passado, estão lá no futuro sugando a intencionalidade, alimentando uma luta que se reaviva em cada nova violação ao destino do Homem. Por isso, qualquer reclamação que se faça a favor deles, tem sentido, porque mostra aos poderes actuais que não são omnipotentes e que não têm controlado o futuro.

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O Estado

1. Tem-se dito que uma nação é uma entidade jurídica formada pelo conjunto de habitantes de um país regido pelo mesmo governo. Depois, estendeu-se a ideia ao território desse país. Mas verdadeiramente, uma nação pode existir ao longo de milénios, sem estar regida por um mesmo governo, sem estar incluída num mesmo território e sem ser reconhecida jurídicamente por nenhum Estado. O que define uma nação é o reconhecimento mútuo que estabelecem entre si as pessoas que se identificam com similares valores e que aspiram a um futuro comum, e isso não tem nada a ver nem com a raça nem com a lingua nem com a História entendida como uma "longa duração que arranca num passado mítico". Uma nação pode formar-se hoje, pode crescer rumo ao futuro ou fracassar amanhã e pode também incorporar outros conjuntos no seu projecto. Nesse sentido, pode falar-se da formação de uma nação humana que não se consolidou como tal e que tem sofrido inumeráveis perseguições e fracassos... sobretudo tem sofrido o fracasso da paisagem futura.

2. Mas ao Estado, que tem a ver com determinadas formas de governo reguladas jurídicamente, atribui-se a estranha capacidade de formar nacionalidades e de ser ele mesmo a nação. Esta recente ficção, a dos estados nacionais, está a sofrer o embate da rápida transformação da paisagem humana. Por isso, os poderes que formaram o Estado actual e que o dotaram de simples atributos de intermediação, encontram-se em situação de superar a forma desse aparelho aparentemente concentrador do poder de uma nação.

3. Os "poderes" do Estado não são os poderes reais que geram direitos e obrigações, que administram ou executam determinadas pautas. Mas, ao crescer o monopólio do aparelho e se converter na sucessiva (ou permanente) presa de guerra de facções (partidos), terminou por travar a liberdade de acção dos poderes reais e também por entorpecer a actividade do povo, só para benefício de uma burocracia cada vez mais desactual. Por isso, a ninguém convém a forma do Estado actual, salvo aos elementos mais retrógrados de uma sociedade. A questão é que à progressiva descentralização e diminuição do poder estatal deve corresponder o crescimento do poder do todo social. Aquilo que seja auto-gerido e supervisionado solidariamente pelo povo (sem o paternalismo de uma facção), será a única garantia de que o grotesco Estado actual não seja substituído pelo poder sem freio dos mesmos interesses que lhe deram origem e que lutam hoje para impôr que dele se prescinda.

4. E um povo que esteja em situação de aumentar o seu poder real (não intermediado pelo Estado ou pelo poder de minorias), estará na melhor condição para projectar-se para o futuro como vanguarda da nação humana universal.

5. Não se deve crer que a artificial união de países como entidades supranacionais, aumenta o poder de decisão dos seus respectivos povos, tal como não o aumentaram os impérios que anexaram territórios e nações sob o domínio homogéneo do interesse do particular.

6. Se é certo que está nas expectativas dos povos a unidade regional de riquezas (ou pobrezas), em dialéctica com poderes extra-regionais e se acontece que resultam benefícios provisórios de tais uniões, não fica, por isso, resolvido o problema fundamental de uma sociedade plenamente humana. E qualquer tipo de sociedade que não seja plenamente humana, estará submetida às ciladas (e às catástrofes) que apresenta o estranhamento das suas decisões à vontade dos interesses do particular.

7. Se, como resultado de uniões regionais, emerge um monstruoso Superestado ou o domínio sem freio dos interesses de outrora (agora totalmente homogeneizados), impondo sofisticadamente o seu poder ao todo social, surgirão inumeráveis conflitos que afectarão a própria base dessas uniões e as forças centrifugas tomarão um impulso devastador. Se, ao invés, o poder decisório do povo avança, a integração das diversas comunidades será também vanguarda de integração da nação humana em desenvolvimento.

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A religião

1. O que se diz das coisas e dos factos, não são as coisas nem os factos, mas sim "figuras" deles e têm em comum com eles uma certa estrutura. Graças a essa estrutura comum, é que se pode mencionar as coisas e os factos. Por sua vez, essa estrutura não se pode mencionar do mesmo modo que se menciona as coisas, porque é a estrutura do que se diz (assim como a estrutura das coisas e dos factos). De acordo com isto, a linguagem pode mostrar mas não dizer, quando se regere ao que "inclui" tudo (também à própria linguagem). Tal é o caso de "Deus".

2. Tem-se dito de Deus diferentes coisas, mas isso aparece como um contrasenso quando se nota o que se diz, o que se pretende dizer.

3. De Deus nada se pode dizer. Só se pode dizer ácerca do dito sobre Deus. São muitas as coisas ditas sobre ele e muito o que se pode dizer sobre estes dizeres, sem que por isso avancemos sobre o tema de Deus quanto ao que se refere ao próprio Deus.

4. Independentemente deste palavreado difícil, as religiões podem ser de interesse profundo, só se pretendem mostrar Deus e não dizer sobre ele.

5. Mas religiões mostram o que existe nas suas respectivas paisagens. Por isso, uma religião não é verdadeira nem falsa, porque o seu valor não é lógico. O seu valor radica no tipo de registo interior que suscita, no acordo de paisagens entre o que se quer mostrar e o que efectivamente é mostrado.

6. A literatura costuma estar ligada a paisagens externas e humanas, não escapando a essas paisagens as características e os atributos dos deuses. Não obstante, mesmo quando as paisagens externas e humanas se modifiquem, a literatura religiosa pode avançar para outros tempos. Isso não é estranho, já que outro tipo de literatura (não religiosa) também pode ser seguida com interesse e com viva emoção em épocas muito distantes. Também não diz muito sobre a "verdade" de um culto a sua permanência no tempo, já que formalidades legais e cerimónias sociais passam de cultura em cultura e continuam a ser observadas mesmo desconhecendo os seus significados de origem.

7. As religiões irrompem numa paisagem humana e num tempo histórico e costuma-se dizer que, então, Deus "revela-se" ao Homem. Mas algo aconteceu na paisagem interna do ser humano, para que nesse momento se aceite tal revelação. A interpretação dessa mudança fez-se geralmente de "fora" do Homem, colocando a mudança no mundo externo ou no mundo social e, com isso, ganhou-se em certos aspectos, mas perdeu-se em compreensão do fenómeno religioso como registo interno.

8. Porém, também as religiões se apresentaram como externidade e, com isso, prepararam o campo para as interpretações mencionadas.

9. Quando falo de "religião externa" não me estou a referir às imagens psicológicas projectadas em iconos, pinturas, estátuas, construções relíquias (próprias da percepção visual). Também não menciono a projecção em cânticos, orações (próprias da percepção auditiva) e a projecção em gestos, posturas e orientações do corpo em determinadas direcções (próprias da percepção kinestésica e cenestésica). Por último, também não digo que uma religião seja externa, porque conte com os seus livros sagrados ou com sacramentos, etc. Nem sequer assinalo uma religião como externa, porque a sua liturgia agregue uma igreja, uma organização, umas datas de culto, um estado físico ou uma idade dos crentes para efectuar determinadas operações. Não, essa forma pela qual os partidários de uma ou outra religião lutam mundanamente entre si, atribuindo ao outro bando diferente grau de idolatria pelo tipo de imagem preferencial com a qual uns e outros trabalham, não toca a substância do assunto (áparte de mostrar a total ignorância psicológica dos contendores).

10. Chamo "religião externa" a qualquer religião que pretende dizer sobre Deus e a vontade de Deus, em vez de dizer sobre o religioso e sobre o intimo registo do ser humano. E mesmo o apoio num culto externalizado teria sentido se, com tais práticas, os crentes despertassem em si mesmos (mostrassem) a presença de Deus.

11. Todavia, o facto de que as religiões tenham sido até hoje externas, corresponde à paisagem humana em que nasceram e se foram desenvolvendo. É possível o nascimento de uma religião interna ou a conversão das religiões à religiosidade interna, se é que aquelas vão sobreviver. Mas isso acontecerá na medida em que a paisagem interna esteja em condições de aceitar uma nova revelação. Isto, por sua vez, começa a vislumbrar-se naquelas sociedades em que a paisagem humana está a experimentar mudanças tão severas que a necessidade de referências internas se torna cada vez mais imperiosa.

12. Nada do que se disse sobre as religiões pode manter-se hoje em pé, porque os que fizeram apologia ou detracção, há muito que deixaram de dar-se conta da mudança interna no ser humano. Se alguns pensavam as religiões como adormecedoras da actividade política ou social, hoje enfrentam-se a elas pelo seu poderoso impulso nesses campos. Se outros as imaginavam impondo a sua mensagem, encontram-se com que a sua mensagem mudou. Aqueles que criam que iam permanecer para sempre, hoje duvidam da sua "eternidade" e aqueles que supunham a sua desaparição em curto prazo, assistem com surpresa à irrupção de formas manifesta ou latentemente místicas.

13. E neste campo, muito poucos são os que intuem o que traz o futuro, porque são escassos os que se dedicam à tarefa de compreender em que direcção caminha a intencionalidade humana, que definitivamente transcende o indivíduo humano. Se o Homem quer que algo novo se "mostre", é porque aquilo que tende a "mostrar-se", está já a operar na sua paisagem interna. Mas não é pretendendo ser representante de um deus que o registo interno do Homem se converte em habitação ou em paisagem de um olhar (de uma intenção transcendente).

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Os caminhos abertos

1. O que há do trabalho, do dinheiro, do amor, da morte e de tantos aspectos da paisagem humana aparentemente olhados de soslaio nestes comentários? Há, concerteza, tudo o que qualquer um pode responder, sempre que queira fazê-lo tendo em conta esta forma de encarar os temas, referenciando olhares a paisagens, e compreendendo que as paisagens mudam os olhares.

2. Pelo atrás referido, é desnecessário falar de novas coisas, se é que há quem se interessa por elas e da maneira que usámos para falar até aqui, porque podem falar do mesmo modo que o faríamos nós. E, em troca, se falássemos sobre coisas que não interessam a ninguém ou com uma forma de expressão que não permitisse desvendá-las, seria um contrasenso continuar a falar para outros.


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